Por que sempre sobra espaço para a sobremesa?

Texto por: Aline Beck e Indiamara Barbosa

É provável que em algum momento da sua vida, após uma refeição completa ou, quem sabe, após um rodízio daqueles que se dá prejuízo, vem a hora da sobremesa. Você está com a barriga cheia e se sentindo satisfeito, mas para a sobremesa sempre tem espaço, né? Afinal, o doce vai para outra gaveta… Essa é uma impressão que todo mundo já vivenciou ou vai vivenciar em algum momento da vida, mas você sabe por que isso acontece?

Alimentar-se, assim como dormir, beber água e descansar, são algumas das nossas necessidades fisiológicas. Existem mecanismos biológicos que sinalizam essas demandas, visando manter o equilíbrio do nosso sistema. Pense como seria disfuncional e não-adaptativo se não houvesse uma sinalização para indicar saciedade ou fome, por exemplo. Pois bem, existe um fenômeno denominado habituação, e ele se manifesta da seguinte forma: quanto mais se faz algo, menos estimulante a ação se torna, ou seja, os receptores que percebem essa ação se habituam ao estímulo. 

Ok, talvez não fique tão claro quando falamos sobre alimentação, mas pense na seguinte situação: você vestiu uma jaqueta daquelas bem pesadas, em um primeiro momento você percebe isso, mas com o passar do tempo você se acostuma, certo? Isso acontece porque os receptores sensoriais da sua pele se habituaram àquele estímulo. Seguindo a mesma linha de raciocínio, quando você está com fome e se alimenta, a cada estímulo (ou garfada), se sente menos prazer na ação de comer e se tem a sensação de saciedade. 

Existem algumas áreas no cérebro que estão associadas a este fenômeno de habituação e a qualquer estímulo, o mecanismo é o mesmo: primeiro há a identificação, depois se categoriza o estímulo como reforçador ou punitivo e partir disso, se tem a tomada de decisão. Ou seja, através desse mecanismo, o cérebro percebe a chegada do alimento e o estômago percebe a quantidade – através de feixes nervosos relacionados à dilatação do mesmo. Mas como se dá essa conexão – tão fina e rápida – entre cérebro e estômago? Você acertou se pensou em hormônios! 

Existem dois hormônios diretamente relacionados com a saciedade e fome: a leptina e a grelina; estes hormônios estão presentes em vários outros mamíferos, inclusive em animais domésticos e estudos indicam outras variadas funções em outros grupos animais como a sinalização da condição corporal para a função reprodutiva e ao estímulo da resposta imune. Mas voltando à regulação da saciedade e da fome em humanos…

Lembra das áreas cerebrais associadas à habituação? Uma delas é o hipotálamo – ele é responsável pela liberação da grelina e a nossa sensação de fome está diretamente associada à quantidade da grelina presente na nossa corrente sanguínea. Conforme nos alimentamos, esse sinal (comida chegando) é enviado ao cérebro que diminui a liberação da grelina pelo hipotálamo e, consequentemente, a sua concentração plasmática. Nesse momento há uma maior concentração de leptina que, antagonicamente à grelina, nos indica saciedade. 

Até aqui entendemos basicamente como nosso corpo regula toda essa questão de sentir fome, se sentir saciado, as áreas e hormônios que estão envolvidos no processo mas, no fim das contas, porque sobre espaço para o doce? Acontece que esse ajuste fino que se dá pelo balanço da leptina e grelina é muito eficaz no controle da ingestão de macronutrientes como carboidratos, proteínas, fibras e vegetais e isso se dá porque essa é a composição dos alimentos mais prevalentes na dieta na história evolutiva da nossa espécie – em contrapartida, a disponibilidade de açúcar é algo muito recente evolutivamente.  

Pudim, brigadeiro, tortas, sorvetes, bolos, mousses, entre outros são sobremesas tradicionais na nossa cultura que são compostas, sobretudo, por açúcar – açúcar este que só começou a estar disponível dessa forma a partir da agricultura – no período neolítico, ou seja, em um passado evolutivo relativamente recente. Sendo assim, o nosso sistema regulatório da saciedade não tem um ajuste tão fino como em relação ao consumo de outros macronutrientes – comparativamente os efeitos da ingestão de açúcar e de água é praticamente a mesma, em relação ao balanço leptina-grelina, ou seja, interfere pouco ou quase nada na sensação de saciedade.

Basicamente, é como se o açúcar fosse capaz de “burlar” esse mecanismo de controle da saciedade e assim, essa afirmação prosaica de que o doce vai para outro compartimento acaba tendo sim o seu fundo de verdade e uma explicação científica por trás disso que envolve fatores biológicos, mas principalmente questões sociais de uma história evolutiva que nos mostra, mais uma vez, que sociedade e biologia andam lado a lado. Então, quando você for comer o seu pudim pós-almoço de domingo com a família toda reunida, não se esqueça da leptina e grelina, do nosso passado evolutivo e de como a ciência pode servir a sociedade das maneiras mais improváveis possíveis, combinado?

Referências:

ALMEIDA, Ana Paula Tridapalli de. Alimentação, educação em ciências e a busca por outros mundos possíveis. 2019. 174 p. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica, Florianópolis, 2019.

Deixe um comentário