Instintos: Manual do Proprietário

Texto por: Henrique Webber Andriolo, João Rafael Coelho e Johann da Silva Soretz

Temos um fascínio pela palavra, e pela ideia, de instinto: um impulso ancestral, enraizado no fundo de nosso ser, que nos força a ter certos comportamentos. E, realmente, esse tal de instinto é muito útil, seja para colocar nele a culpa de ações pelas quais não queremos nos responsabilizar ou para usá-lo como argumento que rebaixe outros povos (ou outros animais) em um status “menos racional”. 

Mas… afinal, você já parou para pensar sobre como os instintos funcionam? Será que são os nossos genes que transmitem essa “sabedoria inata”? Porque, no fim das contas, o que os genes fazem é “fabricar” proteínas, e como uma proteína poderia guardar essas informações? E, aliás, será que os instintos conseguem mesmo fazer conosco tudo que dizem que eles fazem? São muitas perguntas, mas não se preocupe, porque nós temos respostas (e ainda mais perguntas) aqui no manual dos instintos!

Para começar, nada melhor do que o começo: o que realmente se entende como um instinto. Não tem nada de mágico aqui: uma boa definição oficial de instinto para nosso manual — adaptada do famoso Charles Darwin — é qualquer comportamento que pode ser realizado sem se basear em experiências anteriores. Normalmente se associa à ideia de comportamentos inatos, ou seja, que não são aprendidos, que “nascem com o animal (incluindo o animal humano)”. Mas (spoiler) nem sempre a história é bem essa.

Ao destrincharmos esse conceito, também é importante ter em mente outra coisa: um instinto não é um comportamento pré-programado, que vai nos controlar como se fôssemos robôs. Na verdade, ele está mais para uma tendência, para algo que faz ser mais provável agirmos de certa maneira, porém sem ter a capacidade de nos obrigar ao que quer que seja. 

Esses comportamentos instintivos podem ser tanto mais simples, como o comportamento rítmico das migrações das aves, a salivação de um cachorro ao sentir o cheiro de um alimento, ou a forma como um gato se lambe para se limpar, quanto podem ser mais complexos, como o caso dos filhotes saberem quem são seus pais, indivíduos saberem com quem é mais vantajoso se reproduzir, e a construção de uma teia complexa por uma aranha. 

Mas esses comportamentos realmente estão determinados antes mesmo de um animal nascer? Como vocês já bem sabem pelo início do texto, não é bem assim que acontece. Um dos exemplos mais clássicos para tentar desmistificar comportamentos ditos instintivos como algo “escrito nos genes” é o que chamamos de Imprinting (em português seria algo como “Estampagem”). Para entender o que é esse fenômeno, podemos utilizar de um famoso exemplo que você já deve ter visto em alguma cena de filme na infância: um patinho que após sair do ovo identifica o primeiro ser que vê como sua mãe. Esse fenômeno, muito pesquisado em aves, pode ser conceituado como um tipo particular de aprendizagem que ocorre muito cedo na vida do indivíduo, logo após nascer, em que o animal ganha seu senso de pertencimento a uma determinada espécie. Abrindo um parênteses aqui, esse senso de identificação é tão interessante que já se teve casos de humanos que foram criados por outros animais e adquiriram comportamentos básicos daquela espécie, como é o caso do Mogli da vida real.

Gadkiy utyonok (“O patinho feio”), 1956.

Ok… voltando ao assunto de imprinting de patinhos, esse comportamento normalmente é dito como um comportamento inato, que o animal já nasce com ele. E, de fato, os patinhos exibem uma certa preferência por algumas formas que se assemelham ao pescoço de um pato adulto, ou então a certos sons que os pais fazem enquanto o filhote ainda está no ovo. Porém, mesmo que exista uma tendência a uma preferência por certos objetos ou elementos, o filhote precisa associar (um tipo de aprendizagem ativa) esse objeto a algo importante para a sua sobrevivência naquele momento. É o caso dos patinhos, já que eles precisam rapidamente reconhecer quem é a sua mãe, e assim segui-la para aumentar suas chances de sobrevivência e aprender comportamentos específicos de sua espécie e/ou população. Além disso, mesmo essa “predisposição” deve se desenvolver no período embrionário ou durante sua vida fora do ovo, como qualquer outra característica de um animal.

Konrad Lorenz, um dos cientistas pioneiros em estudar o comportamento animal, conduzindo um experimento de imprinting.

Nesse exemplo do imprinting falamos que os filhotes precisam aprender rapidamente quem são seus pais e outros elementos comportamentais. Mas o que é aprender? Podemos definir aprendizagem como simplesmente um processo de aquisição de novas informações pelo animal, tendo uma pré-condição para o cérebro armazenar experiências e usá-las para aumentar as chances de sobrevivência. E mesmo que não pareça para pessoas menos atentas, a grande maioria dos animais pode sim aprender e memorizar informações de algum nível de complexidade. Da mesma forma que você aprendeu a andar nos seus primeiros anos de vida, um rato-canguru também tem que aprender a usar suas grandes pernas traseiras para se locomover. Ou seja, todo animal tem que aprender a usar o seu próprio corpo ao longo do seu desenvolvimento pós-embrionário. E, como falamos, comportamentos instintivos podem apresentar certas tendências, mas estas não controlam 100% o animal, e ele ainda pode modificar alguns desses comportamentos, o que envolve aprendizagem.

Como muitos de vocês já devem saber, para que ocorra o ato de aprender, precisa-se que neurônios, células especializadas do sistema nervoso, façam conexões com outros neurônios e que uma informação chegue até o cérebro, normalmente para ser processada e guardada em regiões especializadas. Então, quando um patinho associa que aquele outro animal é seu pai, ele está recebendo um estímulo novo e fazendo conexões entre neurônios para processar essa informação no seu cérebro. Mesmo que existam alguns neurônios já prontos, a conexão entre eles só será feita caso haja um estímulo, um sinal, o que representa a importância fundamental do ambiente no desenvolvimento de um animal.                                         

Comportamentos são construídos através de uma cascata de interações de desenvolvimento, incluindo influências do ambiente que são tanto herdadas quanto construídas. E o processo de aprendizagem é essencial para qualquer animal,  tornando-se crucial nos momentos iniciais de sua vida. Então, sempre que você vir o seu bicho de estimação, por exemplo, realizando desde comportamentos simples, como o coçar de uma orelha, até comportamentos mais complexos, como associar a palavra “passear” ao ato de sair de casa, lembre-se de que ele também teve que aprender e de que essas coisas não estavam “escritas” nos genes.

Portanto, dizer que outros animais não são inteligentes, são controlados pelo instinto irracional e não são capazes de serem conscientes é só mais uma tentativa do ser humano de se sentir superior em seu mundinho. 

Referências:

BLUMBERG, Mark S. Introduction. In: Basic Instinct: The Genesis of Behavior. New York: Thunder’s Mouth Press, 2005.

GWINNER, E. Circadian and circannual programmes in avian migration. Journal of Experimental Biology, v. 199, n. 1, p. 39–48, 1 jan. 1996.

SPENCER, J. P. et al. Short Arms and Talking Eggs: Why We Should No Longer Abide the Nativist-Empiricist Debate. Child Development Perspectives, v. 3, n. 2, p. 79–87, ago. 2009.

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