Por: Eduardo Quirino |
O que é nossa mente? Podemos estudá-la cientificamente? | Autoria desconhecida |
Uma breve introdução
Como um bom texto de filosofia, este começará com uma pergunta: você já parou para se perguntar o que é a mente e como ela se relaciona com o nosso corpo?
Muito provavelmente, a menos que alguém tenha interesse particular em filosofia ou psicologia, a vida inteira passa e a reflexão sobre a mente não aparece. Porém, uma vez que a pergunta surge ela dificilmente abandona as reflexões das pessoas, afinal, a mente é algo muito bizarro e fundamentalmente relevante até para nossa mais básica e intuitiva noção de si mesmos.
Nela conseguimos reter e processar informações sobre como o mundo é, lembrar como ele foi, imaginar como ele pode ser e, mais ainda, como poderia ter sido. A mente parece ser nossa característica mais presente, mais íntima, mais própria. Nunca falamos sozinhos se podemos falar com nós mesmos. Nós desejamos, pensamos, cremos, temos medos, amores, prazeres, etc. e tudo isso se passa na nossa mente.
Apesar da absoluta centralidade dela em nossas vidas, até este momento, sabemos tão pouco sobre ela que chega a ser enervante. Para iniciar, a mente ou é como um processo físico normal ou é algo como uma alma¹. As duas opções parecem ruins. Para a opção fisicalista (a mente é física), fica muito difícil de explicar por que nossa mente não pesa, não tem massa, não pode ser vista etc. Esse ponto é óbvio para quase todos: a mente não parece física.
A opção da alma também é problemática. Primeiro, se a alma existe e é imaterial, como ela poderia influenciar um sistema físico que é material? Como ela pode produzir energia cinética (grosso modo, a energia relativa ao movimento) sem massa? Energia elétrica sem potenciais, etc. Ademais, como ela pode se manter num corpo humano, se não tem nenhum atributo físico para resistir às paredes dos nossos tecidos?
Essas duas posições constituem, a grosso modo, as duas principais doutrinas em filosofia da mente a respeito do problema mente-corpo que intriga filósofos e cientistas há mais de 5 séculos. Nesse texto, falaremos sobre como uma resposta para esse problema estabeleceu as bases teóricas para uma das mais desafiantes áreas do conhecimento humano: as ciências cognitivas.
Funcionalismo como resposta a “o que é a mente ?”
As duas opções brutas acima são ruins, então temos de refiná-las. A opção das almas astrais não será mais levada em consideração, pois almas são impossíveis de estudar cientificamente. Isso não nos diz muito sobre elas, mas é o suficiente para rejeitar aplicá-las no escopo teórico da psicologia, se tivermos opções menos misteriosas. Portanto, ficaremos com o Materialismo, ou seja, a posição de que não existem almas e tudo que existe é material.
Nos anos 60-70, o Materialismo tomou um rumo novo. Até então, estados mentais não eram levados muito a sério pelos integrantes dessa posição por serem muito obscuros e inacessíveis. O movimento que predominava na psicologia, o Behaviorismo, lidava apenas com o comportamento (em inglês: behavior), os estímulos e as disposições dos indivíduos a se comportarem de certa forma devido a certo estímulo. Sem as obscuridades da mente, eles pensavam, se poderia ter uma ciência do comportamento humano com precisão comparável à física. Infelizmente, essa hipótese não se deu muito bem. Seres humanos mudam de comportamento frequentemente e é muito difícil de explicar essas mudanças sem atribuí-las a nada que seja mental como “desejos” ou “crenças”. Por isso, a forma como as informações são processadas de maneira a permitir mudanças drásticas no padrão de comportamento se tornou algo fundamental para entendermos como e por que as pessoas se comportam de tal e tal jeito. A partir dessa década, a psicologia passou a tentar abrir a caixa-preta do crânio e estudar o que havia dentro dela.
Esse movimento de rebelião à predominância do behaviorismo, denominado Revolução Cognitiva, foi encabeçado por, entre outras pessoas, Noam Chomsky, famoso linguista norte-americano e ativista político que sugeriu, com grande eloquência, em seu livro Syntactic Structures (Estruturas Sintáticas) (originalmente publicado em 1957), que apenas através do estudo de processos abstratos (lógico-matemáticos) poderíamos entender como alguém aprende a falar uma língua. Essas operações abstratas seriam feitas pela mente humana e por isso Chomsky é um dos responsáveis por colocar os estudos da mente de volta nos trilhos. Junto dele, o movimento das inteligências artificiais e novos achados nas neurociências buscavam mostrar outros caminhos para entendermos como seres humanos processam informações².
O funcionalismo nasce exatamente nesse contexto. Buscando unir ciência e filosofia, ele aceita uma pequena divisão na nossa estrutura conceitual do mundo, divisão essa que parte de uma analogia com as ciências da computação entre hardware e software. O mundo físico é completamente determinado por leis da física, mas certos sistemas conseguem rodar programas, ou melhor, realizar atividades e funções. Essas atividades e funções são entendidas como as disposições dos objetos de se comportar e se relacionar de tal e tal forma. Quando um sistema como o cérebro opera suas conexões sinápticas de certas formas, dizemos que ele faz “processamento”, este processamento é justamente um conjunto de ativações químicas, mas que poderiam ser, segundo o funcionalista, exemplificada por sistemas mecânicos, eletrônicos, biológicos, ou etc. através do funcionamento da base realizadora, obtemos um software que, para o cérebro, seria a nossa mente. A ideia é que a mente seja o resultado contínuo das atividades cerebrais e cada estado mental é um tipo particular de jeitos de o cérebro se ativar. O jargão funcionalista é: “a mente é aquilo que o cérebro faz”.
Como a psicologia é, argumentaria o funcionalista, um estudo do comportamento humano que parte de seus estados mentais, e os estados mentais são como programas de computador que podem ser rodados em qualquer base física, o psicólogo não precisa mais dar tanta atenção às bases biológicas do cérebro e ao invés disso, pode focar nas relações entre estados mentais como um todo, para investigar como a mente funciona. A partir dessa visão surgiu a psicologia computacional, que busca entender os processos mentais como análogos a programas de computador, investigando assim, o software.
Seguindo a mesma linha, os neuropsicólogos partiram para investigar como o cérebro processa, armazena e obtém as informações que o meio produz. Eles partiram para investigar o hardware. Como as partes se relacionam e de que forma o cérebro consegue fazer seu trabalho.
Por fim, os psicólogos experimentais, seguindo uma longa tradição de pesquisas sobre como a mente funciona, passaram a operar em laboratório as hipóteses e os modelos computacionais. Medindo como humanos reais realizavam testes e atividades, observando o tempo que demoravam para fazer isso e, posteriormente, como seus cérebros, olhos, músculos e etc. eram ativados durante os experimentos. Assim entregando informações valiosas para as outras duas vertentes, principalmente servindo para unir as duas áreas.
A psicologia cognitiva e seus problemas atuais
A união das três áreas acima criou um novo ramo do conhecimento humano chamado “psicologia cognitiva”. Grosso modo, a psicologia cognitiva se estabelece como a disciplina que estuda os modos através dos quais nós processamos informações, quais são esses mecanismos cerebrais e computacionais e quais relações eles têm entre si, que propiciam a criação de uma alternativa mais ampla de descrever os processos mentais dos seres humanos, e também, de alguns outros seres vivos.
Com essa postura investigativa, se pretende descobrir de que forma conseguimos processar informações dadas pelos sentidos, conectá-las a informações já existentes e produzir novas. Essa relação entre áreas de investigação já poderia explicar como pensar criativamente é possível!
A psicologia cognitiva dá importantes contribuições a respeito de como aprendemos, como lembramos, e sobretudo, sobre como falamos. A fala humana é uma das nossas funções mais complexas e misteriosas, ela agrega e arranja de maneira ordenada uma série de operações mentais distintas, como por exemplo, ao ler um romance você imediatamente se coloca a imaginar cenários, prever resultados, associar personagens com pessoas que você já conhece e até consigo mesma(o), além de tantas outras coisas. Todos esses processos são atividades acionadas, de certa forma, por um estímulo visual e por um mecanismo de interpretação de símbolos que mal conhecemos. Além disso e sobretudo, pouco se sabe a respeito de como todas essas estruturas se conectam, tanto em nível de computacional, quanto a nível neurofisiológico.
Linguagem é um dom humano e uma característica cognitiva das mais ricas, complexas e belas. As relações entre mente e linguagem são absolutamente intrincadas, mal se sabe se é possível isolá-las para estudo e qual o escopo das relações que elas partilham. Uma vida sem linguagem não só não parece ser imaginável, não parece ao menos ser lembrável! Tente se lembrar de algo a mais do que cenas isoladas da sua vida pré-linguística, ou seja, antes de aprender a falar, você consegue? Claramente há uma ligação entre memória e linguagem, será que esse esquecimento é sintoma de alguma característica dessa relação?
A linguagem se relaciona de formas muito curiosas com a memória. Podemos decorar ordens de símbolos de diversas formas, uma das mais eficientes é em tons de narrativa. Pessoas que decoram partes do número Pi descobriram isso a muito tempo³, os participantes geralmente associam o número a ser memorizado da sequência a uma palavra com a quantidade de letras indicadas pelo número, usando, então, essas palavras para fazer uma narrativa, tornando a tarefa de decorar muito mais fácil. Mais que isso, contar histórias ouvidas ou vivenciadas é uma das maneiras mais naturais de se guardar informações complexas na memória. Se você assistiu Game of Thrones, deve se lembrar de vários detalhes que passaram na série e que fizeram o final ser desapontador. Compare sua memória dos elementos da série com os de alguma disciplina, qual te parece mais fácil de armazenar? Será que há uma explicação do porquê?
Quais as relações entre como processamos diferentes tipos de informação e como tomamos decisões? Como isso pode impactar a economia? A política? Sua vida pessoal? Será que áreas como o Mercado de Capitais, que dependem muito da especulação a respeito do futuro, não podem se beneficiar de estudos sofisticados a respeito de como pessoas planejam ou concluem informações a respeito do que virá?
Falar e lembrar, ler e imaginar, lembrar e imaginar e tantas outras atividades que se combinam e tornam nossas vidas minimamente possíveis são baseadas em processos cognitivos de sofisticação altíssima e que despertam a curiosidade e a fascinação em todos aqueles que pararam para refletir sobre o assunto. É incrível notar como respostas à perguntas extremamente abstratas, tais como a respeito da natureza da mente, podem proporcionar reflexões tão relevantes para a vida prática! Igualmente incrível é notar como a mudança de perspectiva a respeito de nossas características mais familiares pode nos levar a problemas de maior complexidade. A humanidade é realmente apenas mais uma espécie entre várias, mas algumas das nossas peculiaridades são, de fato, objetos de orgulho e atenção.
¹Na verdade, há outras opções intermediárias, no entanto elas mais dificultam do que clarificam nossas investigações.
²A posição de Noam Chomsky foi dolorosamente sumarizada, pois não interessa a nós neste momento o que ele defendia, apenas seu papel histórico.
³Existem diversos torneios de memória baseados em lembrar a sequência de algarismos após a vírgula do número Pi.
Leitura sugerida:
TEIXEIRA, J de F. Mente, cérebro e cognição, 4° ed., Rio de Janeiro, Editora Vozes Ltda, 2000.
É uma boa introdução à filosofia da mente disponível em língua portuguesa. Neste livro encontram-se bons capítulos a respeito do funcionalismo e seus desafios bem como uma revisão geral das principais posições a respeito das relações Mente-Corpo.
Referências Bibliográficas:
CHOMSKY, N. Syntactic Structures, 2° Edition, Mouton de Gruyter, Berlin 2002.
_____________ Verbal Behavior: Review of B.F.Skinner’s Verbal behavior, Cambridge MA, MIT reviews, 1957.
FODOR, J, The Mind Body Problem in: Heil, J.(ed.) Philosophy of Mind: A guide and anthology, Claredon, Oxford University Press, 2004.
GROOME, D. et. al. An introduction to cognitive psychology Processes and Disorders, London, Taylor & Francis group Psychology Press, 1999.