Dor e consciência, existe alguma conexão entre elas?

                              
                                                                                                                       Fonte: Engin Akyurt

Por: Cristiano Sikorski e Fabio Kimura

Todas as pessoas – ditas “normais” ao menos – já sentiram dor uma vez na vida. Na infância o terror era ir ao dentista, pois se sabia que ia doer. Já pensou se pudéssemos parar de sentir essa sensação desagradável? Muitos poderiam pensar que seria uma maravilha. Mas, na verdade, ela existe para indicar que algo está errado no nosso corpo e que necessitamos tomar alguma providência. Imagine o seguinte: você está com cárie, mas não sente dor. Em um sistema normal a dor funcionaria como um alerta, mas, neste caso, você não está sentindo nada. O que poderia acontecer? Provavelmente não iria nem perceber que tem cárie, ocasionando a perda do dente e uma grande infecção, o que não seria nada agradável. 

Mas nem todos os seres vivos sentem dor, pois é uma resposta que depende de um sistema nervoso centralizado e nociceptores, que são células responsáveis por captar a informação da dor e enviar ao cérebro. Como isso funciona? O processo inicia com um estímulo aversivo (como colocar a mão na panela quente) que ativa receptores para dor, o qual envia um sinal para a medula espinhal, percorrendo o trajeto até chegar no cérebro. Chegando lá, os sinais de dor são processados em partes distintas do encéfalo e é aí que ocorre a percepção da sensação dolorosa (Figura 1). Trazendo um exemplo prático, o mecanismo seria semelhante ao de quando tocamos uma campainha. Ao apertar o botão (sinal de dor) ocorre a transmissão desse sinal (imagine que o caminho é a medula espinhal) até chegar onde o barulho da campainha soa (encéfalo). Para que o dono da casa escute a campainha é necessário que o sinal chegue até o fim. Cortando a linha de transmissão, o trajeto é afetado e, portanto, não se escuta som algum. Ou seja, se a linha de transmissão for cortada, a pessoa pode ficar tocando a campainha o dia inteiro que o dono da casa nem vai saber que ele está ali. E o mesmo é válido para o mecanismo da dor, se o sinal não chega no encéfalo, a sensação não é processada, como acontece quando estamos anestesiados. É claro, todo esse processo acontece de maneira super rápida. Suponhamos que você, sem querer, encoste a mão em uma panela quente, a resposta é imediata, sem ao menos dar tempo de pensar “nossa, que quente!”. 
Esquema do mecanismo da dor: os receptores para dores são estimulados por uma reação dolorosa e transmitidos através da medula espinhal (que é a porção alongada do SNC (sistema nervoso central) até o cérebro, onde ocorre a percepção da dor  | Modificado de American Nurse Today
Mas agora que já falamos do funcionamento da dor e da sua importância, o que a dor tem a ver com a consciência?
Para responder essa pergunta devemos compreender que “Sentir a dor, e saber disso”, ou seja, ter senciência (aqui no texto utilizaremos como sinônimo de consciência, mas já existem fontes apontando as diferenças entre elas, mesmo sendo tênue), é diferente de apenas responder a um estímulo ou reagir a uma ação, como uma máquina que realiza suas funções. 
Segundo o site Ética Animal, o conceito de senciência está relacionado a capacidade de “ser consciente”, isto é, ser capaz de transformar o estímulo, por exemplo a dor, em experiência. Em outras palavras, é a capacidade de ser afetado positivamente ou negativamente. Um ponto importante é que precisa ter algum nível de emoção sobre essa experiência. Mas o que quer dizer ser afetado de maneira positiva ou negativa? Para exemplificar imagine o seguinte: você está na semana de provas e no dia da prova o professor deixa de aplicar a avaliação, dizendo que todo mundo tirou nota 10 e, ainda por cima, traz um bolo de cenoura para os alunos. Para a grande maioria das pessoas essa seria uma experiência positiva. Outro exemplo, não envolvendo humanos, seria um cachorro abanar o rabo quando o dono chega em casa, demonstrando um sentimento de felicidade. 
Além disso, já se sabe que animais podem também sentir empatia (se sentir no lugar do outro) e ficarem deprimidos. Embora a ideia de haver consciência nos animais pareça controversa, a Declaração de Cambridge (texto elaborado por um grupo internacional de especialistas) aponta o seguinte: “A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos dos estados de consciência juntamente com a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e  aves, e muitas outras criaturas, incluindo os polvos, também possuem esses substratos neurológicos.” Resumindo, o sistema nervoso de outros seres possui mecanismos suficientes para que sejam considerados seres conscientes.
A Declaração anterior afirma que “muitas outras criaturas” também podem ser consideradas seres sencientes, mas provavelmente algumas pessoas já escutaram a frase “peixes não sentem dores”. Será que isso é realmente verdade? Segundo o livro “Do Fish Feel Pain?”(Peixes sentem dor?), os peixes sentem dores e existe a possibilidade de serem seres sencientes! Neste mesmo livro é citado um experimento (p. 46-74) em que foram aplicadas em um grupo de peixes (trutas) injeções contendo toxina de abelha ou vinagre e, em outro grupo apenas injeções de água salina. As trutas que receberam injeções de água salina demoraram menos tempo para diminuir a frequência respiratória e sentir fome (que em humanos também ocorre o aumento da frequência respiratória e perda de apetite) em relação aos que receberam toxina ou vinagre. Em ambos os casos, ocorreu o aumento da frequência respiratória, mostrando que os peixes apresentavam nociceptores e que os mesmos estavam respondendo aos estímulos dolorosos. Como a toxina de abelha e vinagre causam mais desconforto do que a injeção de água salina, era esperado que o tempo de relaxamento das trutas fossem diferentes. Isto é, caso a duração dos sinais de estresse fossem semelhantes, as trutas estariam apenas respondendo a um estímulo doloroso, não respondendo de fato a dor. Além disso, viram que a morfina bloqueia esse efeito. A utilização da morfina e a maneira como os peixes responderam foi um passo importante para determinar a percepção e a capacidade de experienciar a dor. Quanto à senciência (ou consciência), experimentos (p. 75-113) revelaram que as trutas apresentavam uma percepção em relação ao ambiente, capacidade de formar imagens mentais e terem noção de suas próprias ações (autoconsciência). Apesar dos resultados desse experimento e de inúmeros outros estudos nessa linha, ainda há controvérsias entre os cientistas.
Deixando de lado agora os vertebrados, será que a consciência existe também nos animais invertebrados? Os invertebrados (bem como muitos vertebrados) não se expressam da mesma maneira que nós, seres humanos, porém isso não necessariamente quer dizer que eles não sejam também sencientes. 
Nestes dois estudos, observou-se os caranguejos-eremitas, conhecidos por utilizarem conchas vazias de moluscos como abrigo, aplicando choques elétricos quando adentravam na concha fez com que os mesmos tomassem decisões diferentes quanto à escolha de abrigos, indicando uma possível relação de dor e consciência nestes crustáceos. Os testes foram realizados em várias etapas onde os caranguejos escolheram suas conchas e os choques elétricos foram liberados de forma aleatória em algumas conchas. Numa nova oportunidade em que as conchas estavam à disposição, observou-se que os caranguejos que anteriormente levaram os choques dessa vez evitavam aqueles mesmos abrigos apesar de serem suas conchas preferidas antes do choque, observando-se uma preferência maior para o abrigo onde não houve choque elétrico. Isso demonstra que não foi apenas uma reação ao estímulo, a decisão de atribuir aos crustáceos uma consciência foi devido a como o choque elétrico influenciou na escolha, sendo o choque um estímulo que levou a uma emoção negativa que foi lembrada pelos caranguejos.
Assim, aparentemente faz sentido dizer que a dor e consciência possuem uma ligação forte entre si. Dizer que não são apenas seres humanos que são seres sencientes abre um novo campo de visão para futuras pesquisas e talvez de visão de mundo. No entanto, ainda existem muitos mistérios em relação à consciência. O sistema nervoso está presente em artrópodes, mas isso significa dizer que todos eles são seres sencientes? Respostas para perguntas desse tipo ainda são difíceis de serem encontradas, visto que dor e consciência são tomadas a partir do ponto de vista do ser humano, sendo necessário padronizar comportamentos para analisar o efeito da sensação dolorosa em outros seres vivos. Além disso, os animais em geral, “escondem” as dores por ser um sinal que pode trazer desvantagem para o mesmo, sendo uma característica inata para a sobrevivência e evitar mostrar vulnerabilidade para os predadores. Isso mostra o quão difícil é a pesquisa relacionando a dor e consciência em animais, tomando como parâmetro, o ser humano.
O que podemos concluir com isso tudo? Apesar do esforço realizado em tais experimentos, nem todos os fatos a respeito foram esclarecidos e, embora tenha pesquisas afirmando que peixes e vários invertebrados são seres sencientes, essa área ainda continuará sendo alvo de discussão no meio científico por bastante tempo. Serão necessários mais estudos e quem sabe podemos esperar por resultados promissores de modo que um dia todos os animais possam ser melhor compreendidos e que os seres humanos tenham uma atuação levando em conta um maior respaldo ético com animais não humanos. Mais informações sobre o assunto envolvendo dor, consciência e como o conhecimento sobre essa área apresenta informações importantes para se considerar ao refletir o desenvolvimento e entendimento de nossas ações sobre animais não humanos são encontrados aqui no blog Sporum, no texto “A dor é importante: como e por que nós, animais, sentimos dor?”. Boa leitura!

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