Texto por: Djonatan Artur Rosemann e Lucas Garbo
Imagine por um momento a seguinte cena: Você está sentado à beira do rio Tietê, diante de um alaranjado e belo pôr-do-sol, por volta do século XV. Um livro jaz em suas mãos e o barulho da água corrente acompanha as afinadas melodias das aves locais. Você inspira e um ar puro e refrescante adentra suas narinas, lhe acalmando por final ao expirar. É uma bela imagem, não? As coisas parecem estar no lugar e o equilíbrio da natureza está estabelecido.
Agora coloque-se no mesmo local, só que quinhentos anos no futuro. A cena agora mudou para a caótica cidade de São Paulo. O barulho dos pássaros e da natureza que tanto lhe acalmavam, agora deram lugar aos sons e ruídos característicos das cidades. O sol, que antes não lhe incomodava tanto, agora queima sua pele através do calor armazenado no asfalto e prédios da grande metrópole. Ao inspirar, você sente o ar poluído invadindo suas narinas e pulmões, contaminando o restante do seu corpo.
Muda tudo, não é mesmo? Com a urbanização, o meio ambiente que antes estava ali presente, se modifica drasticamente. A “saúde” de um corpo d’água, por sua vez, pode ser alterada devido a mudanças no ciclo da água local e regional, na composição química da água (com a adição de nutrientes e poluentes) e até na estrutura física do ambiente (como por exemplo aterrar um rio), tudo isso causado pela ação humana naquele meio.
Mas o que estou querendo dizer exatamente com a “saúde de um rio”? Bem, dentro do campo da ecologia, quando nos referimos a um ambiente como “saudável”, estamos dizendo que ele está estável, por assim dizer. Isso significa que existe um número adequado de espécies vivendo no local, assim como uma quantidade razoável de indivíduos de cada uma dessas espécies. Ou seja, há uma grande diversidade de animais, plantas, fungos e bactérias vivendo naquele ambiente. Afinal, é esta diversidade e estabilidade que mantém os padrões e processos naturais.
Vamos elucidar com um exemplo aquático: Tudo começa com a base, ou seja, com os produtores. Os organismos fotossintetizantes (aqueles que fazem seu próprio alimento) vão coletar recursos (luz, nutrientes e outros compostos) do ambiente para produzir a glicose. Esses seres, então, serão comidos pelos herbívoros, que na água são geralmente microcrustáceos e insetos. Após isso, os carnívoros entrarão em cena e se alimentarão dos herbívoros. Todos esses agentes, uma hora ou outra, irão morrer e serão decompostos pelos decompositores (como alguns fungos, por exemplo), os quais irão repor o estoque de recursos disponíveis aos produtores, gerando assim um “Ciclo sem Fim”, como diriam no filme O Rei Leão.
É claro que aqui, do jeito que expliquei, foi muito simplista. O que acontece na natureza é muito mais complexo que isso. São diversos os fatores que influenciam nessa “disputa pela vida”, como diria Darwin. No nosso hipotético exemplo do rio, o sucesso ou fracasso dos organismos depende de variáveis como temperatura da água, concentração de fósforo e nitrogênio (nutrientes), transparência e profundidade da água, condutividade, dentre muitos outros.
Todos esses fatores, assim como os próprios fatores internos dos organismos, se modificam quando são expostos a alguma “pressão externa”, como por exemplo, a urbanização de grandes cidades. Vamos retornar à nossa comparação entre o belo Tietê mais rural de 1500 e o agora destruído Tietê do século XXI. Neste período, a temperatura da água é mais elevada devido ao aquecimento global e à ilha de calor (aumento médio da temperatura da região causado pela remoção da mata e asfaltamento do solo) gerada pela Grande São Paulo. A concentração de matéria orgânica é tão grande que levou à morte de quase todos os peixes viventes do ambiente. Essas mudanças na composição básica do rio podem acarretar em problemas como eutrofização (grande problemática ambiental causada pelo aumento de algas devido à grande adição de matéria orgânica na água), assoreamento (deposição de sedimentos no fundo do corpo hídrico e consequente diminuição do volume e profundidade do mesmo) e consequente perda de diversidade. Após isso, é apenas ladeira abaixo: a saúde do local apenas continua declinando e serão poucos os organismos que conseguirão viver por ali.
Corpo d’água completamente eutrofizado (por isso a coloração esverdeada da água) | Fonte: Biologia Total
Mas antes dessa ladeira, havia uma quase reta sempre se equilibrando. Isso ocorria por conta da biodiversidade original, a qual conseguia fazer o “Ciclo sem Fim” acontecer. Para exemplificar melhor essa ideia, vamos destrinchar as funções de cada um dos grupos de organismos aquáticos: O fitoplâncton (algas microscópicas e cianobactérias) ao realizar fotossíntese libera oxigênio na água favorecendo a vida no ambiente. O ciclo continua com o zooplâncton (animais microscópicos que vivem na coluna d’água), que se alimenta do fitoplâncton, realizando um importante controle dos números desses produtores. Esses organismos então são, posteriormente, predados pelos peixes e organismos maiores. Os macroinvertebrados, por sua vez, possuem uma característica importante, por conta de sua fase larval estar na presença da zona bentônica (fundo do lago): eles facilitam a circulação e ciclagem de nutrientes e, por consequência, acelera a decomposição da matéria orgânica, feita por fungos e bactérias, consequentemente fechando o ciclo energético do ecossistema. Dessa forma, se um ambiente está sendo afetado pelas ações humanas, essa biodiversidade pode decair e, consequentemente, o ciclo irá ruir.
Mas então, como exatamente nós, seres humanos, impactamos esses ambientes? A realidade é que, quando o esgoto não é tratado e destinado a um local correto, ele acaba invariavelmente chegando nos corpos d’água. Para a sociedade humana, esses dejetos não possuem nenhum valor aparente, mas para os microrganismos que vivem na água todo aquele cocô e xixi possui nutrientes valiosos, em especial o fósforo (P) e nitrogênio (N). O fenômeno da eutrofização, uma grande problemática atual, como falado anteriormente, ocorre quando esses elementos se encontram em grande quantidade nos corpos d’água.
Além de aumentar o despejo direto desses elementos na água, a urbanização também modifica os entornos dos rios, o que pode gerar ainda mais problemas. A remoção da mata ciliar (vegetação que está à margem do rio) é um ótimo exemplo disso. Com a retirada dessas plantas e a consequente impermeabilização do solo pelo asfalto, a água da chuva passa a carrear muito mais partículas, detritos e nutrientes para esse corpo, aumentando assim a poluição e o assoreamento sofrida por esse rio/lago.
Um estudo de caso sobre como a urbanização pode afetar a qualidade dos rios foi recentemente publicado em Santa Catarina pela Dra Michelle N. Lopes. Ela comparou a pressão de CO2 (pCO2) de riachos com três diferentes graus de urbanização (pouco, médio e muito urbanizado). Foi descoberto que os valores de pCO2, assim como o da temperatura da água e concentração de clorofila-a (variável utilizada para representar o a quantidade de organismos fotossintetizantes presentes), aumentam conforme o grau de urbanização das bacias da ilha de Florianópolis. O aumento do pCO2 é especialmente preocupante, pois quanto maior for o valor dessa variável, maior será a quantidade de CO2 que um corpo d’água irá transferir para a atmosfera. E sabemos que, em termos de aquecimento global, não é nada interessante haver cada vez mais gás carbônico circulando pelo planeta.
Bela imagem da Lagoa do Peri (à direita, em formato de coração) com as encostas e o mar (à esquerda) em seu entorno. Essa lagoa é responsável por abastecer todo o sul da ilha de Santa Catarina, porém vêm enfrentando alguns indícios de eutrofização recentemente | Fonte: PMF/Divulgação
A eutrofização, por sua vez, ao mesmo tempo que favorece alguns organismos, como bactérias, algas e algumas plantas, leva ao desaparecimento gradativo da biodiversidade natural do corpo d’água, em decorrência dos outros organismos que se beneficiaram com o excesso de nutrientes. Sendo assim, os macroinvertebrados, zooplânctons, fitoplânctons e peixes que estavam presentes no momento de equilíbrio do corpo d’água, irão perder a característica biológica natural do seu habitat, levando ao desaparecimento das espécies.
No fim, os problemas causados pelo uso indevido de corpos hídricos resultam não apenas em consequências para os organismos que habitam esses locais, mas também para toda a população humana nos arredores, seja pela fácil proliferação de doenças (causadas pela poluição dos corpos hídricos) ou até mesmo pela contaminação da água, o que impossibilita a captação e utilização de água potável, algo que vem cada vez se tornando mais e mais comum, como os casos de falta de água na própria ilha de florianópolis que ocorreram nos últimos anos.
Isso acaba se refletindo não apenas na qualidade de vida da população em geral, mas também na tão falada economia. Com esse recurso tão importante entregue as traças perdemos em vários setores, como no turismo, com a perda de áreas verdes que atraem turistas, ou até mesmo com a infraestrutura precária, que acaba por permitir cenas que estão cada vez mais são comuns, como esgotos a céu aberto ou despejos sanitários em locais de preservação como rios, que nos leva de volta a problemática anterior onde essa falta de cuidado com o meio ambiente acaba gerando consequências gravíssimas para todos ao seu redor.
Referências:
das Neves Lopes, M., Decarli, C.J., Pinheiro-Silva, L. et al. Urbanization increases carbon concentration and pCO2 in subtropical streams. Environ Sci Pollut Res 27, 18371–18381 (2020). https://doi.org/10.1007/s11356-020-08175-8
IPEA. Diagnóstico dos Serviços de água e Esgotos 2001. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento. Programa de Modernização do Setor de Saneamento, 2002.
REES, W. E. Understanding urban ecosystems: an ecologic economics perspective. In: BERKOWITZ, A. R.; NILON, C. H.; KOLLWEG, K. S. (Ed.) Understanding Urban Ecosystems: a new frontier for sciences and education. New York: Spriger-Verlang, 2003.
SNIS. Diagnóstico dos serviços de água e esgoto – 2003. Brasília: PMSS Programa de Modernização do Setor de Saneamento. Ministério das Cidades, 2004.