Grandes Relógios Ambulantes

Por: Daniel Perez e Thays Vieira

Você já reparou que as atividades de nosso corpo variam em ciclos de tempo regulares? | Pesquisa Fapesp
Acorde. Beba água. Vá ao banheiro. Tome o café-da-manhã. Almoce. Beba água. Vá ao banheiro. Jante. Beba água. Vá ao banheiro. Durma. Repita… Indefinidamente. Ah, não se esqueça de ser pontual! Mas calma, ninguém está impondo que você siga essas ordens… Exceto o seu próprio corpo.
Você alguma vez já reparou que todas essas atividades variam em ciclos de tempo regulares, quase automaticamente? Afinal, por que acordamos de manhã e sentimos sono antes de deitar à noite? “É fácil”, poderíamos pensar, “estamos simplesmente respondendo às pistas do meio ambiente. Os raios solares nos despertam e a escuridão nos prepara pra dormir”. Bom, não dá para negar que o ciclo de claro e escuro é crucial para que nossos corpos realizem suas atividades no tempo correto. Mas será que essa é realmente a única explicação? E o famoso jet lag? Como explicar o desconforto após uma longa viagem passando por diferentes fusos horários? Somos inteiramente dependentes da informação temporal do meio ambiente, ou será que apresentamos ciclos de atividade interno, independentes do meio externo?
Velas que brilham na escuridão: nossos ritmos circadianos internos
Para nossa sorte, cientistas vêm fazendo essas mesmas perguntas há muito tempo. No século 18, um pesquisador francês conduziu um estudo com plantas dormideiras (Mimosa pudica, também conhecida como sensitiva ou dorme-dorme), após observar que estas abriam suas folhas durante o dia e as fechavam durante a noite. Ele se perguntou o que aconteceria se as plantas fossem mantidas em escuridão constante, e observou que elas não apenas continuavam a abrir e fechar suas folhas, mas variavam entre o “abrir” e o “fechar” em um ciclo regular de aproximadamente 24 horas de duração!

As plantas dormideiras abrem e fecham suas folhas em um ciclo de aproximadamente 24 horas mesmo quando colocadas em escuridão constante | NobelPrize.org

Desde então, muitas pesquisas similares foram realizadas com diversos organismos diferentes seguindo o mesmo raciocínio da pesquisa anterior. Da mesma forma que uma música possui o seu ritmo, convencionou-se chamar essa variação regular, constante e cíclica de alguma atividade ou função de um organismo de ritmo. E, para saber se algum ritmo de nosso corpo (ou de qualquer ser vivo) é interno ( endógeno, ou seja, continua acontecendo mesmo sem pistas de informação temporal do ambiente), precisamos eliminar justamente a variação ambiental. Isso foi feito frequentemente isolando organismos do ciclo claro e escuro diário (colocando-os em um estado de escuridão constante) e observando se o ritmo de alguma atividade continuava. Hoje sabemos que plantas, animais (incluindo nós, humanos), e até mesmo bactérias e fungos possuem ritmos endógenos!

E assim como o ritmo de abertura das folhas que vimos nas dormideiras, muitos desses ritmos endógenos apresentam um período de duração de aproximadamente 24 horas, e por esse motivo são chamados de ritmos circadianos (circa = cerca de; dies = dia). De fato, grande parte das funções fisiológicas e processos comportamentais dos animais ocorre dentro de ritmos circadianos. Como exemplos temos o ciclo de vigília e sono, metabolismo, locomoção, temperatura corporal (em aves e mamíferos), excreção urinária, ingestão de água, digestão, secreção de diversos hormônios, entre muitos outros.

Mas então, se possuímos ritmos endógenos circadianos que persistem na ausência de informação ambiental, qual a importância dessas informações para os ritmos? Acontece que, como o próprio nome diz, os ritmos circadianos possuem período de aproximadamente 24 horas, mas não exatamente 24 horas. Quando privados das informações ambientais, esses ritmos muitas vezes se tornam um pouco menores ou maiores do que um dia.

Podemos observar isso no estudo da figura abaixo com o esquilo-voador (que, por sinal, plana pelo ar, e não voa realmente), por exemplo. Diferentemente de nós, ele é ativo durante a noite e repousa durante o dia. Quando mantido em escuridão constante, o esquilo-voador continua apresentando um período de atividade regular. Porém, como este dura um pouco mais do que 24 horas, ele começa suas atividades um pouco mais tarde a cada dia do experimento.

Gráficos demonstrando o ritmo de atividade de esquilos-voadores em condição ambiental normal (a) e em escuridão contínua (b). Note que o período do ritmo é desviado quando o esquilo-voador é mantido em escuridão continua, começando mais tarde a cada dia | Hill, Wyse e Anderson

Portanto, os estímulos ambientais de luminosidade são essenciais para sincronizar os ritmos endógenos exatamente com os ciclos diários de claro e escuro de 24 horas. Este é um dos motivos que explica por que padrões irregulares de sono podem ser tão prejudiciais para nossa saúde. Temperatura, sons e disponibilidade de alimentos são alguns outros exemplos de estímulos ambientais que também podem sincronizar os ritmos endógenos aos ciclos diários do meio ambiente.

Relógios biológicos: controlando os ponteiros de nossos ritmos circadianos

Você talvez já tenha imaginado que a existência de ritmos circadianos para as funções fisiológicas de nossos corpos exige mecanismos internos que possam ajustar estes ritmos, ditando em que momento eles devem começar e acabar. E esses mecanismos são, apropriadamente, chamados de relógios biológicos. O trabalho de um relógio biológico é, portanto, cronometrar a duração de um ritmo.

Os relógios biológicos são mecanismos que controlam os “ponteiros” de nossos ritmos circadianos, regulando o momento em que diversas funções acontecem, como a liberação de hormônios | Todd Churin


Muitos tecidos de nossos corpos podem apresentar relógios biológicos. Porém, por ter esse cargo extremamente importante de “comandar os ponteiros” de nossos ritmos, os relógios biológicos “mestres” (aqueles que impõem seu ritmo sobre todos os outros tecidos do corpo, os quais passam a entrar em sincronia com os relógios mestres) encontram-se frequentemente em nosso Sistema Nervoso.


Em vertebrados, por exemplo, o relógio “mestre” localiza-se em uma porção específica do hipotálamo (uma região do cérebro), que repassa seu ritmo circadiano para outras regiões do hipotálamo responsáveis pela liberação de hormônios envolvidos na regulação de diversas funções, desde função renal e apetite até comportamento sexual e acasalamento. Em mamíferos, também envia sinais para outra região do encéfalo conhecida como glândula pineal, a qual libera o hormônio melatonina, cuja liberação é elevada durante a noite e reduzida durante o dia (isso mesmo, de acordo com ritmos circadianos!). Por isso, está comumente associada com nossos ciclos diários de sono, apesar de também poder estar associada com outras funções.

Ajustando os relógios a nível molecular

Vimos o que relógios biológicos fazem e qual sua importância para o organismo. Porém, uma grande dúvida permaneceu por muito tempo entre os cientistas: como diabos funciona o mecanismo dos relógios biológicos?!

A partir de pesquisas realizadas com moscas-da-fruta (Drosophila melanogaster, aquelas mesmas que ficam pousando nas bananas da sua casa), iniciadas na década de 1980, três cientistas descobriram a resposta (ou o início de uma resposta) para essa pergunta. E foi essa descoberta que rendeu aos pesquisadores o prêmio Nobel em Fisiologia ou Medicina em 2017.

Jeffrey C Hall, Michael Rosbash and Michael W Young, ganhadores do prêmio Nobel em Fisiologia ou Medicina de 2017 pela descoberta dos mecanismos moleculares responsáveis por controlar os ritmos circadianos | NobelPrize.org
Essa história iniciou-se um pouco antes, nos anos 1970, quando um pesquisador e seu aluno conseguiram demonstrar que, por meio de mutações em um determinado gene, o ritmo circadiano de moscas-da-fruta apresentava alterações. Então, nomearam este gene de period (em português, período). Na década de 1980, os cientistas, que mais tarde ganhariam o prêmio Nobel, conseguiram isolar o gene period e descobriram que ele produz uma proteína, cuja concentração oscila em um ritmo circadiano dentro da célula, acumulando-se durante a noite e sendo degradada durante o dia. Porém, como é controlada essa oscilação? Basicamente, quando presente em altas concentrações, a proteína é capaz de inibir o próprio gene que a produz. Enquanto o gene é inibido, a proteína será lentamente degradada, e, quando se esgotar, o gene poderá ser ativado novamente.

Esquema demonstrando o mecanismo de funcionamento dos relógios biológicos que controlam os ritmos circadianos. A proteína produzida pelo gene period durante a noite, chamada PER, inibe o seu próprio gene. Enquanto inibe o gene, a proteína é degradada pela célula durante o dia, até que o ciclo possa começar novamente | NobelPrize.org
Podemos entender esse processo todo como um pêndulo que oscila entre dois estados do nosso “gene circadiano”, um de ativação e outro de inibição, em um ritmo regular de 24 horas. Claro que o processo é muito mais complexo na vida real. Este gene estaria envolvido na regulação de diversos outros genes responsáveis pelos ritmos circadianos, e ainda seria regulado também por outros genes. Essas complicadas interações vêm sendo desvendadas, e ainda não são completamente conhecidas.

O funcionamento dos relógios biológicos pode ser comparado a um pêndulo que oscila entre um estado de ativação (positivo) e outro de inibição (negativo) de genes relógios-chave (responsáveis por controlar os ritmos circadianos) | Autoria própria

Quem quer ter um relógio biológico?

Hoje é reconhecido que este mesmo princípio de oscilação atua no funcionamento de relógios biológicos nas células de diversos organismos vegetais e animais. Por ter presença tão amplamente difundida entre os seres vivos, não chega a surpreender que relógios biológicos conferem diversas vantagens aos organismos, sendo a principal delas a capacidade de fazer previsões. Não, eles não te dão conselhos diários ou semanais sobre qual o melhor momento para tomar decisões na sua vida amorosa. Na verdade, permitem que os animais, por exemplo, antecipem alterações regulares do ambiente e se preparem antes delas acontecerem.

Imagine-se na pele de um pequeno esquilo-voador como o que vimos anteriormente, porém sem um relógio biológico circadiano. Você precisaria esperar as informações ambientais de luminosidade chegarem até você para então poder reagir e saber que está na hora de sair planando por aí. Tudo bem, talvez você até pensaria em usar um relógio no seu pequeno pulso de roedor. Mas, como ainda não inventaram reloginhos de pulso para esquilos, ainda bem que os esquilos-voadores verdadeiros possuem um relógio biológico, né? Dessa forma, eles conseguem ter uma noção interna de tempo e usar a informação de intensidade luminosa para ajustar seu relógio biológico em sincronia com o meio ambiente.

Cronobiologia: uma ciência que não perde tempo para realizar novas descobertas

Diversos estudos são realizados mundialmente dentro da área da Cronobiologia (que estuda os ritmos e relógios biológicos que aprendemos neste texto), devido à enorme importância que possuem para a compreensão do funcionamento temporal de nossos corpos e dos demais seres vivos de nosso planeta, além das inúmeras implicações que desajustes em nossos ritmos circadianos e relógios biológicos podem possuir para nossa saúde e qualidade de vida (como observa-se em muitos transtornos de sono, por exemplo).

E engana-se quem pensa que o nosso país está “atrasado” nessa área! Diversas pesquisas em Cronobiologia são realizadas por brasileiros, seja em território nacional, seja em parceria com outras instituições de pesquisa internacionais. Os estudos são variados, inclusive, indo desde o funcionamento de relógios biológicos em plantas e como os produtos da fotossíntese os influenciam, até o funcionamento de relógios biológicos em roedores subterrâneos. Já pensou em perguntar as horas para um animalzinho que passa a maior parte de sua vida debaixo da terra? Como ele ajusta seu relógio biológico passando tanto tempo no escuro? Pode parecer absurdo, mas é o que a pesquisadora Gisele Oda do Instituto de Biociências da USP (universidade pioneira em estudos de cronobiologia no Brasil) e seus alunos vêm tentando desvendar, como ela própria explica perfeitamente neste vídeo. Estes estudos (e muitos outros que encaminhamos ao longo deste texto) são apenas alguns exemplos que demonstram a qualidade da ciência brasileira e de nossos pesquisadores, ressaltando a importância de mais apoio e investimentos para que ela possa crescer e prosperar, atuando no desenvolvimento científico e tecnológico de nosso país.

E você, como o grande relógio ambulante que é, ficou interessado em aprender mais sobre os ritmos de seu próprio corpo?


Referências
HILL Richard W.; WYSE Gordon A.; ANDERSON Margaret. Fisiologia Animal. 2ed. Artmed, 2012. 920p.

MOYES Christopher D.; SCHULTE Patricia M. Princípios de Fisiologia Animal. 2ed. Artmed, 2010. 792p.

Nobel Foundation. The Nobel Prize. The Nobel Prize in Phisiology or Medicine 2017, Press Release. Disponível em: <https://www.nobelprize.org/prizes/medicine/2017/press-release/>. Acesso em: 30 de junho de 2019.

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