As línguas dos animais

Texto por: Beatriz Stella Lima e Guilherme Xavier de Souza

“Ouvi dizer que seus yahoos marinheiros reclamaram da minha língua marítima, a qual não estaria correta em muitas passagens, ou então que utilizava termos já obsoletos. Não posso fazer nada quanto a isso. Em minhas primeiras viagens, ainda garoto, fui instruído pelos antigos marinheiros, e aprendi a falar como eles. No entanto, descobri que os yahoos do mar são tão propensos a adotar novos termos e alterar sua língua de um ano para o outro como os yahoos da terra. Recordo-me que a cada retorno ao meu próprio país, que o seu velho dialeto estava tão alterado, que eu mal podia compreender o novo. É por essa razão que quando um yahoo vem de Londres para me visitar por curiosidade, nós praticamente não conseguimos proferir nossas concepções de uma maneira que seja inteligível ao outro. As mudanças na língua dos yahoos acabam tornando-a incompreensível para o forasteiro que não acompanhou suas alterações.” 

Jonathan Swift, As Viagens de Gulliver. 

Uma das primeiras explicações do porquê os humanos falam tantas línguas diferentes é o mito da Torre de Babel. No livro de Gênesis, no Antigo Testamento da Bíblia, é dito que todas as pessoas do mundo, unidas por uma língua comum, juntaram esforços e construíram uma torre gigantesca que penetrava os céus. O Senhor, alarmado pela prosperidade do povo, temendo o poder que poderiam alcançar, decidiu confundir a língua ancestral. A unidade do povo se desfez, e as pessoas começaram a falar milhares de línguas diferentes. Incapazes de se compreenderem, as pessoas abandonaram a construção da torre e se espalharam mundo afora.

A Torre de Babel é um símbolo da grande diversidade de línguas existentes entre os homens, e do vão esforço de compreendê-las todas. Essa narrativa, por mais folclórica que seja, faz uma pergunta que até hoje incita muita polêmica entre os estudiosos: como se deu a emergência da linguagem entre os humanos? 

A polêmica já se inicia ao presumir que a linguagem humana é ímpar se comparada às linguagens dos animais. O limite entre homem e animal é mesmo tão bem definido assim? O que nos torna essencialmente diferentes dos outros animais? 

Um linguista diria que a linguagem humana é tão única e complexa que é o que nos distingue entre os outros primatas. Um cozinheiro diria que os animais não preparam suas refeições com o mesmo rigor gastronômico que nós. Um psicanalista diria que há uma cisão profunda que divorcia as pulsões humanas dos instintos dos animais. A minha teoria favorita, particularmente, é a da humorista Rachel Bloom, que propõe que o símbolo da dignidade humana que nos separa dos chimpanzés é um bom chuveiro quente. Curiosamente, há macacos-japoneses que se reúnem em grupos para relaxar em jacuzzis escaldantes.

O esforço integrado de compreender a linguagem humana, a diversidade de línguas e a própria evolução exige exercícios de comparação com padrões de comunicação animal. 

A teoria da evolução das espécies estabelece que diferentes mecanismos levam à especiação, ou seja, à formação de uma nova espécie. O princípio geral é de que uma população original sofre um isolamento geográfico e é dividida em duas populações distintas. Com o tempo, essas populações passam a se diferenciar, e elas se diferenciam a tal ponto que não podem mais ser consideradas como pertencentes a uma mesma espécie – embora as espécies ainda sejam relacionadas. Ao final desse processo, uma nova espécie é originada. 

É interessante reparar que as línguas humanas evoluem por meio de processos similares aos mecanismos de especiação. Quando falantes de uma mesma língua sofrem um isolamento geográfico, essa língua começa a se diferenciar, com algumas palavras sendo cunhadas, outras entrando em desuso, e as pronúncias se alterando. Passado certo tempo, os falantes terão dificuldade de se entender, a tal ponto que não podem mais ser considerados falantes de uma mesma língua – embora as línguas ainda sejam relacionadas. Passado ainda mais tempo, as línguas terão se diferenciado de tal forma que é difícil detectar relações entre elas. 

Todas as formas de vida do planeta, viventes e extintas, são posicionadas de acordo com suas relações evolutivas em uma grande árvore filogenética. Todos os organismos descendem de um único ancestral em comum, e a posição de um organismo na árvore revela as suas proximidades aos outros de acordo com as suas similaridades genéticas e morfológicas. Analogamente, todas as línguas são organizadas em árvores linguísticas, em que as diferentes famílias linguísticas são posicionadas de acordo com as suas similaridades gramaticais, sintáticas, fonéticas e de vocabulário. 

Figura 1: árvore filogenética. Autor desconhecido. 

Figura 2: árvore linguística do Velho Mundo. Autora: Minna Sundberg.

Se, como observamos, os organismos e as línguas evoluem com a manutenção de uma continuidade, não é equivocado deduzir que a própria linguagem humana, por mais sofisticada que seja, é descendente de outros sistemas de linguagem. Essa é uma das vertentes de teorias da emergência da linguagem, embora haja outras: uma vertente propõe uma descontinuidade, em que a linguagem teria emergido subitamente no curso da evolução humana; outra propõe que a linguagem é uma faculdade inata, um produto exclusivo dos genes; e uma quarta vertente propõe que a linguagem é apenas um sistema cultural, adquirido via interações sociais. A primeira vertente é a mais coerente com a teoria da evolução darwiniana. 

Entendendo esta intrínseca conexão entre a teoria evolutiva darwiniana e o surgimento de novas línguas proposta pela primeira vertente, consegue-se, partindo de uma analogia, inferir conexões entre os padrões de surgimento das línguas humanas e os vários dialetos observados nas outras espécies animais. 

 Foi nesta ideia que pesquisadores basearam-se ao investigar a variação de “dialetos” dos animais, ou seja, variações no padrão de vocalização de uma mesma espécie ao longo de um gradiente geográfico. Essa linha de pesquisa permite traçar paralelos entre os vários grupos de animais viventes.

Uma das espécies mais bem estudadas quanto à variação geográfica de dialetos é o estorninho europeu (nome científico: Sturnus vulgaris). O estorninho europeu é uma espécie de passarinho nativo da Eurásia. Ele é dotado de uma incrível capacidade de emitir uma grande diversidade de sons e de conseguir aprender e imitar outros sons, inclusive algumas palavras de línguas humanas. Cientes dessa habilidade, pesquisadores buscaram entender os padrões de variação do canto desse passarinho e constataram que diferentes cantos não estavam dispostos aleatoriamente em uma determinada área, mas, na verdade, seguiam um padrão em forma de mosaico que delimita regiões onde os passarinhos cantavam o mesmo tipo de canto. Isso é um achado muito interessante e vai de encontro com a ideia darwiniana de evolução.

Não são somente os estorninhos europeus que denotam essa propriedade. Outros animais, como os cetáceos (grupo que compreende animais como as baleias, golfinhos e orcas), também apresentam padrões de comunicação tão intrigantes quanto os dos estorninhos. Orcas e cachalotes formam grupos matrilineares, isto é, grupos mantidos por uma matriarca e seus filhos. Cada um desses grupos possui um dialeto próprio, e quando ocorre uma troca de “palavras” entre dialetos de dois grupos distintos, esses grupos constituem clãs vocais.

Outro exemplo de um animal não tão conhecido, mas que também exibe um padrão de diferenciação de dialetos é o grupo dos híraxes. Os híraxes são mamíferos placentários nativos da África. Eles têm a capacidade de aprender padrões de vocalização distintos através de transmissões sociais, pois cantam repertórios de canções bastante diferentes dos repertórios de outras regiões. Assim, percebe-se dialetos distintos em diferentes regiões habitadas por essa espécie.

Considerando os exemplos citados, nota-se que grupos de espécies com alta mobilidade são os grupos com maior diferenciação de dialetos. As aves, os mamíferos marinhos e os humanos apresentam alta capacidade de dispersão por longas distribuições espaciais. Como viajam por longas distâncias e se dispersam pelo planeta, as populações inevitavelmente se isolam umas das outras ao ocuparem um maior número de ambientes, o que provoca a diferenciação dos repertórios vocais. 

Nesse sentido, considerando a linguagem como uma adaptação evolutiva e os dialetos como prova de sua plasticidade, pode-se afirmar que as aves, os mamíferos marinhos e os humanos ocupam nichos acústicos similares, pois estão expostos a condições ecológicas e sociais relativamente parecidas, no que diz respeito à bioacústica. Um nicho ecológico é o conjunto de recursos necessários ao desenvolvimento de uma espécie, e um nicho acústico é, por consequência, a eficiência selecionada da transmissão de um sinal vocal que permite a uma espécie ocupar um determinado ambiente. 

A ocupação de nichos similares ocasiona uma convergência evolutiva. A convergência é um fenômeno evolutivo comum. É o motivo pelo qual baleias-orcas e tubarões-brancos são tão fisicamente parecidos, mesmo sendo filogeneticamente distantes. As asas das aves e dos insetos têm origens embrionárias completamente diferentes e não podem ser consideradas estruturas homólogas, e sim análogas. Isso significa dizer que as aves e os insetos não são filogeneticamente próximos, mas compartilham uma estrutura morfológica semelhante que desempenha uma mesma função. As aves, os mamíferos marinhos e os humanos estão posicionados em ramos distantes na árvore da vida, mas têm padrões de vocalização similares porque ocupam esse nicho acústico similar. O exercício de comparar esse aspecto da comunicação auxilia, portanto, na compreensão da trajetória evolutiva de cada um dos grupos.

Quanto à nossa pergunta inicial, de como se deu a emergência da linguagem entre os humanos. Essa é uma pergunta que ainda não pode ser respondida de forma completa e satisfatória, mesmo porque a escassez de registros históricos desse período da história humana prejudica o empirismo de evidências necessárias a uma teoria bem atestada. No entanto, esperamos ter apresentado nesse texto um argumento convincente pela inclusão das línguas dos animais nas teorias da emergência da linguagem humana. Quando pensarmos em Babel, nos elos perdidos com línguas ancestrais e nos milhares de sons pronunciados nos ritmos da nossa história, lembremo-nos também  dos graves chamados das baleias, dos roucos coaxares dos sapos e sobretudo das lindas canções dos pássaros. Em alguma língua de algum lugar em algum momento, alguém certamente originou um fonema ao imitar o melodioso canto de uma ave, e a esses animais nós devemos essa riqueza.

Figura 3: colagem a partir da pintura “A Torre de Babel”, de Pieter Bruegel (1563).

REFERÊNCIAS:

DESPRET, Vinciane. O que diriam os animais? São Paulo: Ubu Editora, 2021. Tradução de Letícia Mei.

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KRAUSE, Bernard L.. The Niche Hypothesis: a virtual symphony of animal sounds, the origins of musical expression and the health of habitats. The Soundscape Newsletter, [S.L.], v. 6, n. 1, p. 1-5, jun. 1993.

SWIFT, Jonathan. Viagens de Gulliver. São Paulo: Sesc: Instituto Mojo, 2019. 984 p. Tradução de Renato Roschel.

YOUNG, Holly. A language family tree – in pictures. 2015. Imagens de Minna Sundberg. Disponível em: https://www.theguardian.com/education/gallery/2015/jan/23/a-language-family-tree-in-pictures. Acesso em: 31 jul. 2022.

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