Bom, antes de começarmos a falar sobre o voo das aves, precisamos explicar a origem desses animais. Existem diversas hipóteses sobre o surgimento desse grupo e a mais aceita atualmente é a “Teoria Dinossauros-Aves”. Proposta inicialmente por Huxley (1868-1870), ela surgiu a partir do descobrimento do fóssil de Archaeopteryx lithographica em 18611 (Imagem 1), um dinossauro inserido no grupo Theropoda – assim como o tiranossauro, os velociraptores e deinonicos. Por se tratar de um dinossauro com penas, esse foi o primeiro indício que dinos e aves teriam um ancestral em comum. Posteriormente, outro fóssil foi encontrado, de um dinossauro também pertencente ao grupo Theropoda e com características similares ao primeiro, fortalecendo ainda mais a hipótese.
Essa descoberta afirmou a identificação filogenética sobre em qual grupo o ancestral comum estaria inserido. Sob essa perspectiva, as aves teriam surgido a partir da evolução de animais terópodes, com a aquisição de algumas características anatômicas e fisiológicas. Quem diria que os aterrorizantes dinossauros se transformariam em pequenas e coloridas aves?
Reconstituição ilustrada de um Archaeopteryx lithographica | Autor: James Reece |
O voo evoluiu apenas duas vezes no reino animal: no filo dos Artrópodes e nos Cordados, respectivamente. Nos Artrópodes, o voo surgiu nos insetos, que em sua forma adulta, são os únicos invertebrados aptos a voar, enquanto no grupo dos Cordados, que inclui os animais vertebrados, essa característica é única de aves, morcegos e dos já extintos pterodáctilos. Isso nos mostra que voar não é algo tão simples assim. O voo possui um alto custo energético (ou seja, muita energia é gasta para o animal se manter no ar) quando comparado à outras formas de locomoção, como nadar, correr ou caminhar. Isso significa que voar precisa apresentar um benefício para o animal e, de fato, ele apresenta. O voo possibilita a fuga da predação do solo, um modo mais econômico de forrageio e permite a ocupação de um ambiente menos movimentado – a atmosfera, fazendo com que o grupo supere obstáculos geográficos.
A realização do voo exige a integração de praticamente todos os órgãos e processos biológicos, especialmente os sistemas sensitivo, respiratório, cardiovascular e até o digestório, isso tudo para uma única atividade. Ao falar de características morfológicas, imediatamente lembramos do alongamento dos membros superiores do grupo, o que possibilita a formação de asas. As asas são proporcionais ao tamanho do animal e sua forma está intimamente relacionada com o comportamento apresentado pela ave, por exemplo, aves mergulhadoras apresentam asas curtas e relativamente pequenas, enquanto aves marinhas possuem asas longas e pontiagudas3. As asas são formadas por um conjunto de penas, estas apresentam uma morfologia variada de acordo com a região do corpo em que se inserem. As penas são responsáveis não só pelo voo, como também pelo isolamento térmico e comunicação visual. E olha que curioso: penas possivelmente evoluíram das escamas de seus ancestrais dinossauros.
Para que possam bater suas asas e se manter nos céus, as aves necessitam de uma musculatura peitoral desenvolvida (Imagem 2). O músculo grande peitoral é maior e fica responsável por abaixar as asas durante o voo, enquanto o músculo supracoracóide tem a função de levantar as asas3. Além de músculos, as aves, e somente elas, possuem ossos bem diferenciados, chamados de ossos pneumáticos. Eles são ossos ocos, preenchidos com ar, o que faz com que o esqueleto do animal seja mais leve, facilitando o voo. Somado a isso, as aves possuem uma característica fisiológica fundamental: a respiração. Isso mesmo, o sistema respiratório das aves é diferente de todos os outros grupos de animais.
Musculatura peitoral envolvida no voo | Fonte: Victor Cadenas (via slideshare) |
As aves e outros grupos de vertebrados, incluindo nós, mamíferos, possuímos em comum diversas estruturas no aparelho respiratório, como as narinas, cavidade nasal, laringe, traquéia, brônquios e pulmões4. No entanto, existe uma estrutura muito importante no sistema respiratório de aves que não aparece em mamíferos: os sacos aéreos. Os sacos aéreos são bolsas que se estendem dos pulmões e se localizam na região anterior e posterior do corpo do animal (até cinco anteriores e quatro posteriores). Eles possuem como função a ventilação do ar para os pulmões, tanto no processo de inspiração quanto no de expiração. Mas eles não realizam trocas gasosas (essa função é realizada pelos pulmões)! E olha só, existem estudos que demonstram que os sacos aéreos já estavam presentes em dinossauros!
Além de diminuírem o peso do animal, os sacos aéreos garantem um fluxo unidirecional do ar, o que significa que não há mistura entre o ar rico em oxigênio que vem do ambiente e o ar que é expelido. O fluxo unidirecional também é comum aos répteis crocodilianos e alguns lagartos, mas esses animais não utilizam dessa adaptação para voar, sorte a nossa!Perdeu o fôlego com tanta informação? Pois é, dá uma respiradinha e vamos em frente! E por falar em respiração, vamos entender como funciona o mecanismo de inspiração e expiração nas aves. Basicamente, sua respiração ocorre em quatro ciclos, como mostrado na figura abaixo (Imagem 3).
Ciclo ventilatório em uma ave | Fonte: MOYES Christopher D.; SCHULTE Patricia M. |
Para entender melhor, pense que a inspiração é marcada pela expansão dos sacos aéreos, onde os sacos aéreos posteriores são preenchidos com ar cheio de oxigênio (O2) vindo do meio externo, enquanto os sacos aéreos anteriores são preenchidos com ar vindo do pulmão e, portanto, com teor de O2 bem menor. Já na expiração ocorre o esvaziamento dos sacos aéreos, momento em que os sacos aéreos posteriores comprimem e expulsam o ar oxigenado que veio do meio externo para o pulmão, enquanto os sacos aéreos anteriores comprimem e expulsam o ar com dióxido de carbono (CO2) para fora da ave. Em altitudes mais elevadas, onde o ar é mais rarefeito (menos O2 disponível no ar) essa característica permite a elas lidarem com essas concentrações menores de oxigênio e sustentarem o voo em altitudes tão altas.
Mas você já deve ter ouvido falar de aves que não voam, como o pinguim, avestruz, a galinha e várias outras. E por que esses animais não utilizam suas asas para voar? Bem, como em todo o mundo animal, existem as exceções (aquelas espécies diferentonas). A principal causa para essas aves não voarem é a perda de um osso peitoral denominado quilha, onde se inserem os músculos responsáveis pelo batimento das asas durante o voo. Ainda não se tem clareza sobre o motivo pelo qual isso ocorre, porém um estudo recente realizado na Universidade de Harvard demonstrou que a perda do voo está relacionada com uma série de mudanças na estrutura e comportamento do DNA desses animais. Mas isso não quer dizer que elas são menos adaptadas. Muito pelo contrário, é preciso entender que apesar de não voarem, elas estão adaptadas ao seu modo de vida e se dão muito bem sem o voo.
Bom, a essa altura você já deve ter entendido porque nós, humanos, não podemos voar. Se você quisesse sair voando por aí, além de uma respiração adaptada, precisaria ter membros superiores alongados e membros inferiores menores, um peso corporal relativamente baixo, músculos do peito desenvolvidos para sustentar o voo, penas e uma lista de outras características presentes em aves… Uau, melhor deixar o voo para as aves mesmo. Ainda bem que existe o avião e outros meios que voam por nós e nos dão um pouco da sensação do que é estar nas nuvens!
Referências bibliográficas
SHIPMAN, Pat. Taking Wing: Archaeopteryx and the Evolution of Bird Flight. Simon and Schuster: 1999.
RAYNER Jeremy M. V. Current Ornithology. 5ed. Plenum Press: 1983.
MOYES Christopher D.; SCHULTE Patricia M.. Princípios de Fisiologia Animal. 2ed. Artmed, 2010.
SCHMIDT-NIELSEN Knut. Fisiologia animal: adaptação e meio ambiente. 5ed. Santos, 2002.