Dragões, cavaleiros com suas armaduras pesadas duelando em um combate mortal, magias e aventuras. Não, você não está em um episódio de Game of Thrones. Muitas vezes estes são elementos encontrados nas narrativas de um jogo de RPG de mesa. Você já imaginou aprender física, química, biologia e outros conteúdos que vemos em sala de aula durante uma aventura? Pois bem, o RPG pode sim ser usado como um componente didático. Mas primeiro, que tal falar um pouco sobre o que é o RPG?
Bom, RPG é a sigla inglesa de Role-Playing Game, que em português significa “jogo de interpretação de personagens”. Diferentemente de outros jogos, neste não há vencedores ou perdedores, o jogo é o desenrolar de uma história que é narrada por um dos jogadores, conhecido também como Mestre. Ele tem um papel fundamental no jogo: o de criar a história em que os outros jogadores estão inseridos. Ele será o narrador, aquele que será os olhos, ouvidos e todo o universo em que os personagens dos jogadores estarão vivendo. O restante dos jogadores, por sua vez, interpretarão um personagem pré definido ou criado por eles naquele mundo, muitas vezes utilizando uma ficha de criação de personagem.
A história nunca está pronta, ela sempre está em desenvolvimento, dependendo das ações realizadas pelos personagens dos jogadores. Cada jogador tem liberdade para tomar a atitude que achar verossímil ou conveniente para o seu personagem. O mestre não tem controle sobre os jogadores, esta característica dá o caráter coletivo e cooperativo ao RPG. Diferente de outros jogos, o RPG não é linear, os jogadores irão construir a história em conjunto, pois cada decisão tomada por eles levará a uma consequência que poderá alterar o rumo da história do mestre.
Uma das características mais marcantes do RPG é sua interatividade. O jogador faz o que ele quiser no mundo que está inserido. Por exemplo, se ele quiser entrar na taberna da cidade, subir numa mesa para dançar e cantar, ele pode, a interação vai até onde a criatividade do jogador alcançar. Mas como todo jogo, ele também possui regras. Estas estão disponíveis nos livros chamados “Módulos Básicos”. Conhecidas também como mecânicas, elas definem a criação de personagens dentro da história. Delimitam suas características e determinam os resultados de suas ações, a quantidade de dano causado por uma queda ou quão boa foi a apresentação demonstrada em nosso exemplo anterior. Essas informações devem ser coerentes para formarem um sistema de regras funcional.
Não importa qual sistema de regras adotado pelos jogadores, a regra fundamental é se divertir. Mark Rein-Hagen¹ demonstra em sua obra Vampiro: A Máscara e Lobisomem: “Você deve adaptar este jogo de acordo com a sua necessidade – se as regras o atrapalharem, então ignore-as ou mude-as. No fim, a verdadeira complexidade e beleza do mundo real não pode ser captada por regras; é preciso narrativa e imaginação para fazer isso”. Também conhecida como Regra de Ouro, citada em diversos livros de RPG, ela dá a liberdade para que o mestre e seus jogadores modifiquem ou criem sua próprias regras em favor da diversão e assim permitindo que a história se desenvolva melhor.
Mas de onde surgiu isso tudo? Quando alguém sentou numa mesa e criou o jogo com a maior qualidade gráfica e jogabilidade do mundo apenas usando papel e lápis?
Quem diria que um dos precursores do RPG de mesa seriam os jogos de guerra de tabuleiro. Pois bem, em 1953, Charles Roberts criou um jogo que você provavelmente já ouviu falar ou até mesmo já jogou, chamado WAR, e durante as décadas de 1960 e 1970 estes tipos de jogos ganharam muita popularidade e permitiram o surgimento de uma indústria ligada a este tipo de entretenimento. Mas não foi só isso, este jogo estabeleceu também uma grande e estável subcultura de jogos de estratégia e operações militares, conhecidos como war games (populares entre os adolescentes e adultos de classe média norte americana com fã-clubes, revistas próprias e jargões ou vocabulários específicos).
Com uma comunidade interessada em jogos e grupos formulando regras para estes, as bases do RPG já estavam se formando. Porém faltava algo, faltava a subjetividade da magia que jogos de guerra não tinham na época, faltava a fantasia. Então, foi publicado o livro que representou um marco para toda fantasia medieval atual, algo com tanta importância que inspira pessoas até hoje. Se você leu até aqui, com certeza já viu ou ouviu falar sobre O Senhor dos Anéis. John Ronald Reuel Tolkien, em 1966, lançou a trilogia que fez os jogadores substituírem as batalhas napoleônicas pelas batalhas da Guerra do Anel, e os soldados de Napoleão por elfos, orcs, hobbits e anões. A fantasia que faltava, agora estava presente, e não demorou para que, em 1974, Dave Arneson e Gary Gygax dessem origem ao primeiro RPG lançado comercialmente e até hoje mais jogado no mundo: Dungeons & Dragons. Se você gostou e quer saber mais sobre a história do RPG veja aqui.
Hoje, depois de 45 anos existem dezenas de RPGs de mesa: Dungeons & Dragons, 3D&T, Storyteller, Call of Cthulhu, GURPS, Old Dragon, Dungeon World, Tormenta, entre outros, cada um com seu estilo e regras próprias para se jogar.
Dado de 20 faces, muito utilizado no RPG, conhecido como D20| Autor desconhecido
O RPG no ensino
Por apresentar características como socialização, cooperação, criatividade, interatividade e interdisciplinaridade, o RPG, sendo bem planejado, pode ser uma ferramenta muito prática e lúdica para ser utilizada no ensino.
Imagine só: você é um marinheiro em um navio espanhol em pleno século XVI e está partindo para o Novo Mundo. Você e seus colegas estão na cabine do capitão, observando em um mapa a rota que o navio fez quando, de repente, gritos vindos do convés revelam que uma embarcação pirata se aproxima! O capitão ordena que preparem os canhões, mas para que o disparo seja preciso em um navio pirata em movimento, deve-se calcular a trajetória do tiro versus a velocidade de deslocamento do alvo.
Nesse breve exemplo, podemos observar quão interdisciplinar o RPG pode ser. Podemos abordar História das Grandes Navegações, Geografia na interpretação de mapas, Física e Matemática para calcular a trajetória da bala do canhão e, quem sabe, um pouco de ecologia marinha caso nossa embarcação afundasse, não é mesmo?
Isto já está sendo feito aqui no Brasil. O primeiro RPG com temática nacional foi “O Desafio dos Bandeirantes”, escrito por Carlos Klimick, Luiz Eduardo Ricon e Flávio Andrade, publicado em 13 de Dezembro de 1992. Este RPG coloca os jogadores/alunos em aventuras durante a colonização do Brasil. Imagine só quão divertido e imersivo seria aprender um pouco sobre o Brasil Colonial do ponto de vista de pajés, jesuítas e bandeirantes, podendo ainda interagir com figuras míticas brasileiras, como Saci e a Mula sem Cabeça.
Grandes eventos com a temática de união do RPG e o ensino foram feitos. Em 2002, ocorreu o Simpósio RPG & Educação, em São Paulo-SP, realizado pela LUDUS CULTURALIS, que promoveu o intercâmbio entre pesquisadores e educadores. Em 2003 e 2004, foram feitas novas edições do simpósio, que tiveram ainda mais participação do público e de palestrantes inscritos.
Desde então, iniciativas estão sendo tomadas por grupos em diferentes partes do Brasil para difundir o RPG como prática pedagógica. Como é o exemplo do professor de Física do Colégio de Aplicação da UFPE, Ricardo Amaral, que escreveu o livro “Rpg Na Escola – Aventuras Pedagógicas”, o qual é um suporte pedagógico para os professores que desejam aprender e aplicar esta prática com seus alunos. (Reportagem da TV Globo sobre o trabalho desenvolvido pelo professor Ricardo Amaral). Muito se tem pesquisado sobre o RPG de mesa e suas aplicações, inúmeros outros trabalhos abordam sua potencialidade em ser uma ferramenta didática na escola ou em universidades, aqui temos alguns trabalhos de diversas disciplinas: Física, Educação Ambiental, História, Química, Artes, Geografia, Biologia. E não para por aí, há pesquisas sobre o uso do RPG até na Medicina e na Psicologia.
Por fim, podemos perceber como o RPG é uma ferramenta versátil e divertida que, se trabalhada da forma correta, pode facilitar a apropriação de conhecimentos, ao mesmo tempo que entretém alunos e professores no processo de ensino-aprendizagem. Quem diria que um jogo de interpretações teria tanto potencial na educação. Quando a fantasia e o ensino se unem, uma monótona aula pode se tornar uma grande aventura.
¹ Rein-Hagen, Mark. Vampiro: A Máscara e Lobisomem: Guia dos Jogadores. São Paulo Devir, 1994.