“A ideia de dois sexos é simplista. Biólogos agora acham que há um maior espectro que esse.”
As categorias de macho (XY) e fêmea (XX), antes encaradas como bem definidas e opostas, estão sendo colocadas à prova. Isso porque estudos recentes tornaram cada vez mais complexas as relações entre essas categorias. E esses estudos aumentam ano a ano, principalmente pelo advento das tecnologias do DNA e da modernização das técnicas moleculares, as quais possibilitam maior acesso e análises dos genomas. A seguir, exponho alguns estudos realizados nos últimos anos que mostraram o quão complexa é a categoria do sexo e como a biologia pode (e deve!) contribuir para seu entendimento.
“Colcha de retalhos” celular
A ideia de que todas as células de um indivíduo do sexo masculino são XY e todas as do sexo feminino são XX, agora divide espaço com uma visão dos indivíduos enquanto verdadeiras “colchas de retalhos” quanto ao sexo de suas células. Isso quer dizer que algumas pessoas do sexo masculino podem ter células no seu corpo que possuem cromossomos XX, enquanto alguns indivíduos do sexo feminino podem ter populações celulares que contenham cromossomos XY. Essa situação pode acontecer devido a diferentes processos como o mosaicismo, o quimerismo e o microquimerismo.
No mosaicismo (figura 1) o indivíduo se desenvolve de um único zigoto, mas acaba havendo divisão desigual dos cromossomos sexuais, formando um mosaico, ou seja, num mesmo organismo, células com diferentes sexos. Por exemplo, um zigoto XY pode desenvolver um organismo com populações celulares diferentes, compostas de XY ou até X. Ao fim do desenvolvimento, se a maioria das células desse indivíduo for composta por apenas um X, esse indivíduo será do sexo feminino e terá uma condição chamada Síndrome de Turner. Contudo, se a maioria das células contiverem os cromossomos XY, será formado um indivíduo do sexo masculino.
O quimerismo (figura 1) ocorre quando dois zigotos se fundem no útero. Assim, se um deles tiver o par de cromossomos XY e o outro XX, haverá populações celulares dos dois cariótipos no indivíduo. Em um artigo publicado em 2011, o geneticista Paul James e colaboradores relataram o caso de uma mulher de 46 anos que possuía grande parte do seu corpo composto por células com cromossomos XY. Esse caso se trata de uma forma de quimerismo, onde a paciente não sofreu nenhum prejuízo quanto à fertilidade, uma vez que estava grávida do quarto filho no momento do diagnóstico.
Figura 1. Representação do quimerismo e mosaicismo. |
Uma variação do quimerismo, chamada microquimerismo (figura 2), ocorre quando células-tronco do feto ultrapassam a placenta, chegando ao corpo materno, e o contrário também ocorre. Em uma revisão publicada na revista Nature em 2015, Claire Ainsworth afirma que os trabalhos que mostraram esse processo desestabilizaram a divisão dos sexos, uma vez que pessoas do sexo masculino podem carregar células de suas mães e pessoas do sexo feminino que geraram indivíduos do sexo masculino podem “hospedar” suas células. E o mais interessante é que já foi evidenciado que essas células se integram e são funcionais nos “tecidos do hospedeiro”.
Figura 2. Microquimerismo na gravidez. Células-tronco do feto passam para o corpo materno e vice-versa. |
Para além do binário: as várias facetas do sexo
Ainda na mesma revisão, Ainsworth relata que a categoria do sexo está sendo redefinida. No lugar de um binarismo simplista formado apenas por macho e fêmea, agora se fala em um amplo espectro do sexo. A autora relata que os estudos das Desordens do Desenvolvimento Sexual (DSD) expuseram esse amplo espectro através do relato de uma diversidade para além das categorias bem definidas de macho e fêmea.
As relações do sexo se mostram cada vez mais complexas, uma vez que são relatados cada vez mais casos de discordância entre sexo cromossômico e sexo gonadal/anatômico. Essas condições intersexuais, também chamadas DSD, como relatado anteriormente, são desafiadoras para os médicos e familiares da criança que na maioria das vezes escolhem se ela vai ser criada como um menino ou como uma menina. Uma revisão sobre as DSD, publicada em 2014, evidenciou que essas condições são encontradas em um a cada 100 nascimentos, expondo que essas variações são mais comuns do que se supunha até então.
Desse modo, a figura 3 representa o amplo espectro sexual derivado das diversas pesquisas sobre as DSD. Com certeza essas descobertas não se assentam muito bem em um mundo binário e supostamente bem definido, dividido em machos e fêmeas.
Figura 3. Espectro Sexual. Representação do espectro sexual, com fêmea e macho típicos nos polos e as nuances entre essas categorias. As complexas relações entre o sexo cromossômico, gonadal e genital são evidenciadas, sendo responsáveis pela formação das diversas categorias intermediárias do sexo. Adaptado de Brito, 2015. |
Outra reflexão interessante trazida pela autora Claire Ainsworth refere-se ao fato de que os sistemas legais acabam se ancorando nessas categorias do sexo, partindo do pressuposto que elas são distintas e bem delineadas. Desse modo, aqueles que por alguma razão não se enquadram nessas dicotomias podem ter seus direitos legais influenciados, uma vez que esses sistemas legais se apoiam no sexo que é atribuído no nascimento.
Termino com um comentário de John Achermann, da University College London’s Institute of Child Health, que resume muito bem as ideias aqui apresentadas: “Eu penso que há maior diversidade entre macho e fêmea, e há certamente uma área de sobreposição onde algumas pessoas não podem facilmente se definir dentro de uma estrutura binária.”
Estudos importantíssimos! Parabéns!