Hygronemobius sp. cf. carregando semente de Ischnosiphon arouma. (F. D. Santana) |
Uma das perguntas mais feitas a um biólogo é: “Mas pra que esse bicho serve?“ Para responder, muitas vezes, usamos a tão famosa resposta: “Todo organismo tem sua função no ecossistema…”, ou uma que eu particularmente gosto de usar: “No mínimo, ele é comida de alguém.” Mas talvez essa resposta surja apenas como uma forma de dizer: “Cara, sobre esse bicho, exatamente, eu não sei, mas ele faz alguma coisa aí…”
Não que os animais dependam de nós entendermos sua função para terem seus hábitats e sua vida respeitados, mas ao relacionar sua existência a uma função, as pessoas acabam por reconhecer a necessidade de protegê-los. E é, também, para isso que existem tantas pesquisas estudando o nicho de alguns animais ou plantas.
Os grilos são desses bichos pouco compreendidos. Muitos os conhecem apenas pelo “canto”, outros os associam a poderes místicos, ou se recordam pelos contos, como o Pepe, o amigo sábio do Pinóquio. Entretanto, poucos sabem o que esses animais fazem pelo “bem” da natureza. O mesmo ocorre com as formigas, que todos veem dentro de casa, ou no quintal, fazendo suas trilhas, mas também não compreendem a sua importância ecológica.
Assim como os animais são pouco compreendidos, as plantas, embora seja mais fácil entender seu papel no ecossistema, têm mecanismos pouco conhecidos. Elas precisam espalhar o máximo que podem as suas sementes, e assim obterem um maior sucesso reprodutivo, e, por isso, desenvolvem as mais diversas estratégias. Essas estratégias vão desde sementes que podem voar longas distâncias (anemocoria), sementes vivíparas que germinam antes de se soltarem da planta mãe, produzindo um fruto saboroso para que os animais se alimentem delas e espalhem as sementes ao defecar (endozoocoria), ou até algumas que dependem de dois, ou mais, animais para se dispersarem (diplocoria), entre outras diversas estratégias.
Um dos exemplos de diplocoria seria quando um animal (normalmente vertebrado) se alimenta de um fruto e o descarta, seja por abandono, regurgito ou fezes, e nele sobra alguma polpa aderida à semente, ou esta tem uma espécie de película protetora entre o fruto e si mesma, o que seria atrativo para outros animais, geralmente invertebrados, que também vão tentar se alimentar dela e carregá-la para algum outro lugar. Essa segunda fase da dispersão já era bastante conhecida para as formigas, mas pouco se sabia a respeito dessa prática por grilos, embora já tenha sido observada em campo e, inclusive, relatada por pesquisadores estrangeiros.
Semente de Geoppertia altissima sendo carregada por grilo da espécie Luzarida lata (F. D. Santana) |
Para entender o papel dos grilos na segunda fase de dispersão das sementes, um estudo realizado na Amazônia, por Flávia Delgado Santana e equipe, pelo INPA (Instituto Nacional de Pesquisas Amazônicas), comparou a dispersão de sementes de quatro espécies de plantas realizada por grilos e por formigas. O estudo se deu durante o período diurno (de maior atividade das formigas) e noturno (de maior atividade dos grilos).
Maranta sp. (Marantaceae) |
As quatro espécies de plantas utilizadas foram todas da família Marantaceae (a mesma da araruta, de onde se extrai um tipo de polvilho), herbáceas que crescem pouco (1-2 metros) e que produzem sementes com arilo (uma cobertura carnuda que as envolve parcial ou totalmente). As plantas Goeppertia altissima (0,347 g) e Ischnosiphon arouma (0,348 g), ambas dispersadas primariamente por vertebrados, foram classificadas como sementes grandes. Já Monotagma densiflorum (0,055 g) e Monotagma spicatum (0,067 g), ambas dispersadas por formigas, foram classificadas como pequenas.
Nessa pesquisa, os autores se perguntaram três coisas, e obtiveram as seguintes respostas:
Primeiro, as formigas e os grilos não diferem no número de sementes que são capazes de remover, mas os grilos tendem a remover mais sementes maiores que as formigas, embora ambos tenham removido tanto as sementes grandes, como as pequenas.
Segundo, a maioria das formigas é mais ativa durante o dia, portanto, os grilos removem mais sementes à noite do que as formigas. Inclusive, o papel dos grilos na dispersão de sementes pode ter ficado durante tanto tempo subestimado porque os estudos de dispersão de semente ocorrem, na maioria das vezes, durante o dia.
Por fim, os pesquisadores descobriram que a distância que as formigas conseguem carregar uma semente pequena é maior que a distância que os grilos a carregam, porém estes carregam sementes maiores por distâncias maiores. Então, na média, a distância que grilos e formigas percorrem carregando uma semente é a mesma.
Portanto, os grilos teriam grande influência na dispersão de plantas cujas sementes são tão pesadas que as formigas não conseguem carregar. Além disso, as formigas possuem uma rota definida, elas vão levar as sementes para o ninho, gerando uma concentração de plantas próximas ao formigueiro,o que pode ser ruim para as plantas, pois pode favorecer que patógenos se espalhem pelos indivíduos, mas, por outro lado, o ninho pode ajudar na germinação das plantas. Os grilos, por sua vez, por forragear sozinhos, podem seguir qualquer caminho, dispersando as sementes por locais mais diversificados, modificando os padrões de distribuição daquela planta.
Assim como todas as pessoas no mundo, os cientistas ainda têm muitas perguntas sem respostas, e a cada pergunta respondida, outras surgem, como: “quais as consequências dessa interação planta-grilo-formiga?”, ou “será que a dispersão que creditamos à formiga foi feita por ela, por um grilo, ou algum outro invertebrado?”. O fato é que jamais saberemos a resposta para todas as perguntas, mas agora sabemos que, assim como as formigas, exímios cantores como os grilos, também trabalham muito.
Grilo Phalangopsis sp. e semente de G. altissima (F. D. Santana) |
Muito legal Bruna. Parabéns. Abraços Renato
Oi Bruna, acabei de esbarrar na sua nota e ficou muito legal!!! Parabéns pela capacidade de "traduzir" tão bem a linguagem do paper 🙂