Escrito por: Amira Cardim Lopez, Danton Magri, Vitoria Saiury Ijuim
Pense no primeiro filme ou série de vampiros do qual você consegue lembrar. Como eles são? Fortes, sombrios e malvados? Talvez com uma certa predileção pela noite e uma fraqueza pelo sol? Ah, e definitivamente se alimentam de sangue! Esses seres mitológicos têm uma origem: a fronteira da Sérvia com a Hungria do século XIV, inclusive a palavra “vampiro” é a única de origem sérvia ainda em uso no mundo. Acredita-se que o primeiro registro de vampirismo é de 1725, quando um médico do exército sérvio alocado na vila de Kisilova escreveu um relatório que incluía histórias bizarras sobre moradores sendo estrangulados e tendo seu sangue sugado. A crença geral era de que o responsável pelos crimes seria um homem morto e enterrado há 10 semanas! Sobrou para os soldados do exército o agradável trabalho de reaver o corpo do sujeito do cemitério e qual não foi a surpresa de todos quando o corpo foi encontrado fresco e com restos de sangue ao redor da boca! O pânico tomou conta da Europa quando um jornal de Viena espalhou a notícia, o vampirismo virou uma condição médica e figurou em muito atestado de óbito por aí.
Mais de um século depois Bram Stoker publica o clássico livro Drácula, associando vampiros aos morcegos pela primeira vez. Claro que isso não veio do nada, sendo criaturas da noite os morcegos são ligados à feitiçaria e demônios nas lendas europeias mais antigas que se possa imaginar. Mas será que esses mamíferos tão peculiares merecem tanta má fama? Ao final desse texto esperamos convencer você de que morcegos são animais praticamente inofensivos, a não ser que você seja uma vaquinha dando rolê no pasto à noite
Assim como nos livros, filmes e lendas, os vampiros têm predileção por sangue, o que nos faz pensar que a maioria dos morcegos também, mas isso não é totalmente verdade. Há sim morcegos que se nutrem de sangue, são chamados morcegos hematófagos ou morcegos-vampiro e são minoria: apenas três espécies que pertencem à família Phyllostomidae, e incluem três gêneros, cada um com uma espécie: Desmodus, Diaemus e Diphylla. Dessas três espécies só o vampiro comum (Desmodus rotundus), se alimenta de grandes mamíferos, enquanto o vampiro de asas brancas (Diaemus youngi) e o morcego-vampiro-de-perna-peluda (Diphylla ecaudata) se alimentam do sangue de aves. Todas as espécies restantes se alimentam de frutas, insetos ou néctar.
Acontece que esses morcegos-vampiro não tem nada a ver com os vampiros dos filmes no quesito aparência: eles são pequenininhos e bem fofos. Não querendo quebrar outro estereótipo sobre os vampiros, mas querendo, os morcegos-vampiro só ocorrem aqui na América do Sul. O Drácula tem mais chance de ser brasileiro do que europeu! Os morcegos são os únicos mamíferos capazes de voar, dando a eles uma capacidade que muitos de nós gostaríamos de ter. Eles também são os únicos mamíferos que se alimentam exclusivamente de sangue.
Os morcegos têm uma série de adaptações que facilitam sua dieta sanguinolenta. Os dentes incisivos são longos e cortantes, permitindo furar a pele de suas presas sem causar nenhum tipo de dor: sua mordida é quase imperceptível! O restante dos dentes é muito pequeno, já que não precisam mastigar sua comida. Eles utilizam a língua para lamber o sangue em movimentos rápidos, ou seja, não sugam-no como os vampiros do cinema! Um sulco nos lábios inferiores facilita a entrada de sangue. Para evitar morder a presa várias vezes (o que deixaria ela bem irritada) um anticoagulante na saliva chamado de – se segura – draculina, impede a ferida de fechar.
Para escolher a presa perfeita, possuem sensores térmicos no nariz que permitem detectar as regiões mais quentes da presa e, portanto, com mais vasos sanguíneos. Nos livros e nos filmes, os vampiros mordem os pescoços das mocinhas em perigo, romantizando o ato cruel e sangrento, mas na vida real, os morcegos buscam locais como as pernas dos mamíferos e aves. Isso é até perigoso para eles – algum movimento brusco da presa pode machucar o morcego. Mas eles vieram preparados: pelos especializados (parecidos com os bigodes dos gatos) alertam para qualquer movimento perigoso.
Imagine você ter que comer o equivalente a seu peso em toda refeição, é com isso que os morcegos têm que lidar toda noite. Seus 30-40 gramas podem não parecer tão impressionantes, mas eles enchem tanto seus estômagos que nem conseguem voar direito depois da janta. Depois de tanto esforço, o ideal seria partir para a siesta, mas nada é fácil na vida desses mamíferos voadores – eles podem ficar no máximo dois dias sem comer. Isso porque a rápida digestão de um alimento líquido não permite muitas reservas, obrigando-os a consumir tudo o que digerem quase que na hora.
Atos bondosos na natureza são raros, acontecendo só em alguns animais como hienas, cães selvagens, chimpanzé ou nós humanos; e por incrível que pareça, apesar da fama ruim dos morcegos-vampiro, eles praticam o altruísmo também. Como não podem ficar muito tempo sem se alimentar, um morcego faminto pode solicitar sangue de outro, mas só se o colega de poleiro for um parente ou um amigo próximo. Eles fazem isso lambendo o corpo, as asas e o rosto de seu companheiro, e se tudo der certo, ganharão sangue regurgitado e terão a janta garantida! É um comportamento recíproco já que aquele morcego que doou sangue, também poderá pedir em outro momento da sua vida.
Alimentar-se exclusivamente de sangue não é tão eficiente quanto o cinema faz parecer. O sangue não tem quase nada de gordura ou açúcares e tem pouquíssimas calorias. Por causa disso, morcegos hematófagos têm baixos níveis de insulina e sua nutri manda eles consumirem grandes quantidades de sangue. Mas colocar tanto desse fluido para dentro tem uma consequência séria para o trato gastrointestinal dos morcegos: excesso de ferro. Como é que esses animais conseguem sobreviver com uma alimentação mais pobre do que a de um universitário no final do mês?
A resposta é: deletando genes – no genoma dos morcegos, menos é mais! Olha só algumas deleções que os morcegos têm:
- Genes da insulina – para que produzir insulina se sua dieta tem pouco açúcar?
- Genes de receptores para os gostos doce e amargo – o sangue fica muito mais gostoso se você não sentir eles.
- Genes da formação do estômago – deixam o órgão na forma de um balão esvaziado, cuja única função é retirar o máximo de água possível do sangue ingerido, deixando para a digestão apenas os componentes sólidos. Isso significa que eles são obrigados a fazer xixi enquanto comem.
- Um gene cuja função era manter ferro fora do intestino – essa é engenhosa: como as células do intestino são facilmente substituíveis nos excrementos, é melhor mandar ferro para elas do que deixar na corrente sanguínea onde ele pode causar problemas.
- Um dos genes de metabolismo – essa perda permitiu aos morcegos acumular uma molécula responsável por melhorar a memória e isso os deu a capacidade de recordar quem são seus parentes e amigos e até de lembrar onde estava aquele rebanho de gado delicioso que serviu de jantar na outra noite. Na verdade, morcegos hematófagos parecem ser mais espertos e sociáveis do que os outros.
Agora que você sabe que os hematófagos são basicamente inofensivos para nós, chegou a hora do segundo plot-twist: eles são benéficos! Ao predarem outros animais, os morcegos contribuem com seu controle populacional. É um princípio básico da ecologia: quando determinado animal cresce e se reproduz sem ninguém caçando-o – no maior oba-oba – chega uma hora em que isso começa a dar problema. Predadores são necessários para manter um equilíbrio no ecossistema.
Outra vantagem de mantermos os morcegos-vampiro por perto (mas nem tão perto assim) é seu potencial biotecnológico: os anticoagulantes que eles produzem podem ser aplicados em nós! Inspirados pela hirudina, anticoagulante da sanguessuga, começamos a perceber que as moléculas que permitem aos morcegos se alimentarem em uma mordida só poderiam nos ajudar em cirurgias e no tratamento de doenças que obstruem vasos sanguíneos. Os vampiros da vida real são realmente fantásticos! Pense nisso na próxima vez em que você assistir a Crepúsculo.
Referências Bibliográficas
REIS, Nelio Roberto dos; PERACCHI, Adriano Lúcio; PEDRO, Wagner André; LIMA, Isaac Passos de (ed.). Morcegos do Brasil. Londrina: S.I., 2007. Disponível em: http://www.uel.br/pos/biologicas/pages/arquivos/pdf/Morcegos_do_Brasil.pdf. Acesso em: 26 jul. 2022.