Carcharhinus leucas. Cabeça-chata de começo a começo.

Por: Mateus Rachewsky de Alencar

Estava morninho. Sentia meus irmãos e irmãs do meu lado. A gente se remexia às vezes. De repente, frio. Luz. Liberdade? Após alguns minutos eu começo a me adaptar melhor ao novo ambiente. A água agora está agradável. Olho ao meu redor e vejo meus irmãos pela primeira vez, cada um indo para o seu canto. Olho para trás e vejo minha mãe, indo embora. Ela é tão grande e majestosa! Será que eu vou ser assim um dia? Começo a explorar meus arredores e percebo que a água aqui é rasa, com 1m, talvez 1,5m de profundidade. Raízes de árvores se embrenham em meio à areia. Estou em um estuário, um local seguro, onde predadores não conseguem chegar, por causa da baixa profundidade. Minha mãe sabia disso! Que esperta…

Gosto de viver aqui. A comida é abundante, a temperatura da água é agradável e as raízes das árvores oferecem um ótimo esconderijo para quando alguma ameaça se aproxima. Peixes são minha comida favorita, mas também posso comer outras coisas que estiverem dando sopa por aí. Uns bichos da superfície que boiam e que se eu chegar muito rápido, eles nadam com umas nadadeiras cheias de pena pra cima e vão pra o topo das árvores. Por que será que eu não consigo nadar tão alto que nem eles? Também tem um bicho estranho que fica no fundo, com umas cinco ou mais nadadeiras, parece aquelas estrelas que ficam no céu da noite. Ah, uma vez, eu comi um bicho com uma casca dura e umas nadadeiras parecidas com pinças. O safado me beliscou, acredita? Vai deixar marca… Mas, não vou mentir, tava delicioso.

Sinto falta dos meus irmãos. Eu sei que a gente está perto, mas, ao mesmo tempo, eles estão tão distantes… Cada um tem o seu canto e ai de quem chegar perto! Falo por experiência… Já me tiraram até lasca da minha nadadeira dorsal. Eu só queria um bicho de pinça que tava mais perto da minha irmã e ela não pensou duas vezes pra me abocanhar.

Já se passaram alguns anos e eu estou crescendo rápido. Já não estou conseguindo me mover com tanta facilidade aqui neste estuário. Acho que alguns dos meus irmãos também sentem isso. Chegou a hora de explorar para além do estuário. Meu irmão mais forte, com uns 20cm a mais de comprimento que eu, vai na frente, com a confiança que sempre teve ao defender sua raiz de árvore. Vou atrás depois de um tempo. Estamos nadando a alguns minutos e a água já está bem funda. Bom, 50m é fundo pra mim. Acho que, por estar nadando atrás, eu vi o vulto se aproximando pelo lado direito dele. Ele não viu. Um tubarão com mais que o dobro do tamanho dele o abocanhou com uma mordida só. Num momento, ele estava ali, no outro… nada. No meu breve momento de choque, eu não pude deixar de perceber que o tubarão que o abocanhou era estranhamente… similar a nós. Então os maiores comem os menores, mesmo sendo da mesma espécie? Nunca havia me passado pela cabeça essa possibilidade. Que mundo…

Já se passaram algumas semanas desde o incidente. Tenho um território que posso chamar de meu. É pequeno, pois sou menor que os outros adultos, então não consigo defender uma área muito grande sem esgotar minhas energias. Bom, por enquanto, basta. Tenho o que preciso.
Depois de uns bons 17 anos, mais ou menos, eu já posso me considerar uma adulta completa. Tenho quase 3m de comprimento e um território razoável. Ninguém chega perto e sai inteiro. E, agora que sou grande, eu como de quase tudo. Peixe, tartaruga, golfinho, até um ou outro
tubarão menor quando bate a fome. Infelizmente, a comida tem ficado cada vez mais escassa. Várias vezes na semana, vem um animal gigante da superfície, diferente de tudo que eu já vi aqui em baixo, com nadadeiras em forma de rede que chegam até o fundo. Ele varre tudo e leva muito da nossa comida. Guloso. Será que ele realmente precisa de tudo isso? Estou pensando seriamente em me mudar. O território que lutei tanto para conseguir, agora já não supre minhas necessidades. Me lembro de ter sentido algo diferente perto da margem enquanto saía do estuário. Talvez lá tenha mais comida.

Depois de nadar por uns dias, cheguei no tal lugar. A água aqui é diferente… não é tão salgada. Vou seguir a fonte dessa água nova. Continuo nadando por umas horas contra a correnteza e percebo a drástica mudança na água. Não tem ondas e vejo paredes de terra nas duas extremidades. Acima da superfície tem várias árvores que fazem sombra na água. É agradável. Sinto meu corpo mudando um pouco por dentro. Não sei explicar, mas fica cada vez mais fácil aturar essa “água doce”. Até que gostei daqui. Não tenho tanto espaço pra nadar quanto no mar aberto, mas tem bastante peixe e mais daqueles “nadadeira de pinça”. Eles já não conseguem mais me machucar, então é um banquete! Já estou nessa água doce há alguns dias. Repus minhas energias e até consegui criar uma reserva de gordura. Agora sinto uma outra necessidade. Algo diferente, como se fosse uma vontade de… encontrar um macho da minha espécie? Não sei explicar. Mas, como estou sozinha nessa água doce, vou ter que voltar ao mar e procurar.

Quando estou quase chegando no mar, vejo vários cabeça-chatas nadando por ali. Isso é raro… por que não estão se atacando? Vou chegar mais perto. Vejo várias fêmeas e machos. Um deles chega mais perto, começa a nadar perto de mim. Inconscientemente, eu nado com ele, repetindo os mesmos padrões. Depois de um tempo, ele morde minha nadadeira caudal. Não é como se eu fosse pra qualquer lugar mesmo… me viro de barriga pra cima.

Já se passou quase um ano e eu sinto meus bebês se remexerem dentro de mim. É incrível como passa rápido. Mas não posso deixar que nasçam aqui no mar aberto. O estuário em que vivi meus primeiros anos me parece uma boa ideia. Volto até lá e vejo que várias outras mamães tiveram a mesma ideia. Se cuidem, meus filhos! Sobrevivam!

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Estava morninho. Sentia meus irmãos e irmãs do meu lado. A gente se remexia às vezes. De repente, frio. Luz. Liberdade?

Referências
COMPAGNO, Leonard J.V. FAO Species Catalogue. Vol. 4. Sharks of the world. An annotated and illustrated catalogue of shark species known to date. Part 2 – Carcharhiniformes. FAO Fisheries Synopsys, Vol.4 (125), p. 478-481, 1984.
CARPENTER, Kent E. Carcharhinus leucas. Fishbase. Disponível em: http://www.fishbase.org/summary/873
SIMPFENDORFER, C.; BURGESS, G.H. Carcharhinus leucas. The IUCN Red List of Threatened Species, 2009. Disponível em: https://www.iucnredlist.org/species/39372/10187195

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