Somos fruto da entropia? Uma nova forma de olhar para a origem da vida.


Por: Lucas Garbo

Representação artística da sopa primordial | Obra do modernista espanhol Antoni Gaudí.

Em 24 de novembro de 1859, o naturalista inglês Charles Darwin publicou a primeira impressão de seu inovador manuscrito “A Origem das Espécies”. A partir desse momento, as ideias de Darwin começaram a ser amplamente discutidas e posteriormente, no século XX, foram aceitas como consenso entre os cientistas a respeito da evolução da vida na Terra. O livro contém ideias sobre a evolução da vida a partir de um ancestral comum, assim como tentava elucidar sobre os mecanismos de especiação. Ele podia conter a receita para se originar uma nova espécie a partir de outra, mas não respondia uma das questões mais importantes da humanidade: O quê é a vida e como ela surgiu? Se todos os organismos se originam a partir de outro, como surgiu o primeiro? É o que discutiremos nesse texto.

Para começarmos, precisamos comentar um pouco sobre como a evolução darwiniana funciona. A teoria diz que em uma determinada população de organismos, cada indivíduo possui um grupo de características específico.  Imaginemos uma população de lesmas que dependem da produção de muco para lidar com a falta de água. No bosque onde moram, uma forte seca está transformando gradativamente o ambiente em um deserto. Devido à isso, as lesmas que conseguem produzir mais muco em relação às outras acabam tendo uma maior probabilidade de sobreviver e se reproduzir, transmitindo assim a capacidade de gerar muco mais eficientemente para suas filhas. Portanto, as lesmas que produzem mais muco foram selecionadas pelo ambiente em que estavam, enquanto as outras morreram e não conseguiram passar suas informações adiante. Este processo é o que denominamos de seleção natural, podendo assim ter início a especiação, onde ao longo do tempo, uma nova espécie de lesma, mais eficiente na produção de muco, se origina.

Após as ideias de Darwin terem sido aceitas pela comunidade científica, teve início uma verdadeira corrida entre os estudiosos para decifrar qual teria sido o primeiro organismo vivo e como ele surgiu. O primeiro cientista a introduzir ideias pertinentes a esse tema foi o russo Aleksandr Oparin. Ele propôs, em 1936, que a vida provinha de aglomerações de aminoácidos e moléculas primitivas em algum local do planeta Terra, provavelmente uma água quentinha e com acesso à algum agente redutor, o qual seria capaz de servir como catalisador (que pode acelerar reações químicas), como raios terrestres ou ventos solares. Isso tudo, teria acontecido teoricamente há mais ou menos 4 bilhões de anos atrás, pois já temos evidências científicas de que a vida surgiu de fato 3,8 bilhões de anos atrás. A partir daí a evolução já começaria a atuar.

Em outras palavras, tomemos a ideia da “sopa primordial”. Essa “sopa” seria nada mais nada menos do que um local confinado (talvez um buraco em alguma pedra oceânica) onde havia alguns precursores de moléculas orgânicas dissolvidas na água marinha. Essas moléculas, que teoricamente estavam em um ambiente redutor (propriedade química que estimula a doação de elétrons dos átomos nas reações químicas) como a Terra em sua formação, estariam constantemente mudando para algo mais estável através de reações químicas espontâneas. É importante frisar que, de acordo com a teoria, isso ocorreria por milhões de anos. Ao longo do tempo, essas moléculas ficariam cada vez mais estáveis, até por fim darem origem à uma espécie de RNA primitivo.

RNA? Mas o que é isso? Uma nova espécie de vírus? Bom, não exatamente. O RNA é um tipo molécula que todos os seres vivos possuem. Irmão do famoso “DNA”, o RNA é ligeiramente diferente, possuindo um átomo de oxigênio à mais em sua estrutura. Muitos especialistas concedem ao RNA o título de “primeira molécula da vida” por três razões: ele é capaz de se auto replicar, possui atividade catalítica (como catalisador) e todas as formas de vida, incluindo os polêmicos vírus, possuem esse tipo de molécula em suas respectivas células.

Voltamos então por um momento para a nossa sopa. Imagine que agora possuímos alguns RNAs diferentes nela. Estes, como já foi dito, conseguem se replicar (ou seja, conseguem preservar a sua forma e estrutura para seus “filhos”) e servem como catalisadoras (podia ajudar moléculas próximas à realizar reações químicas). É importante salientar que cada um desses RNA possui uma composição de nucleotídeos diferente, que gera uma forma diferente para cada um. Essa forma pode determinar se um RNA específico é um bom catalisador ou não. Na nossa sopa, caso tivesse uma forma “boa”, um determinado RNA poderia produzir coisas que fariam com que fosse mais estável e eficiente em relação a outros, aumentando a probabilidade de se replicar. Quase como a seleção natural, porém com moléculas invés de espécies. Devido à isso, esse processo é denominado “seleção química”.

Eventualmente, um determinado RNA, já bem estável, seria envolto por uma bolha de gordura, que separaria ele do ambiente externo, gerando assim a primeira célula. Denominamos essa célula de “LUCA” (Last Universal Common Ancestor, ou Último Ancestral Comum Universal). Posteriormente, esse RNA seria substituído pelo DNA, pois é mais estável e eficiente para passar as informações às células-filhas. Essa “historinha” da sopa primordial, teoricamente, explica como a primeira forma de vida veio a existir.

Diferenças entre a molécula de DNA (dupla fita) e RNA (fita única) | Autor desconhecido

Muitos dos que defendem a teoria do “design inteligente” poderiam dizer que alguma forma divina criou essa “base” para a vida para que, um dia, os humanos (ou algum outro tipo de organismo racional) pudessem vir a existir. Porém, muitos dos cientistas alegam que a vida existe como subproduto natural das leis físico-químicas do universo, sendo assim resultado de forças aleatórias e sem propósito do universo. Nessa linha de pensamento, um biofísico vem trazendo algumas contribuições muito interessantes para a área: Jeremy England.

Jeremy nasceu em Boston no ano de 1982 e se formou em bioquímica pela universidade de Oxford. Em 2009 finalizou seu doutorado em Stanford e desde 2011 é membro do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (o famoso MIT). Ele vem contribuindo na área da origem da vida com uma ideia simples, mas ao mesmo tempo muito complexa: adaptação evolutiva por meio da dissipação de energia. Mas antes de entrarmos nesse universo estranho, temos antes que aprender um conceito físico importantíssimo: a entropia.

A entropia é um dos processos físicos mais interessantes. De acordo com o Dicionário de Português Online, entropia significa “Medida que, num sistema termodinâmico, determina o grau de desordem, pela ação de uma temperatura, representada por “S””. Confuso, não é mesmo? Em outros termos, entropia é, basicamente, uma medida que diz quão “desorganizado” está um sistema (por exemplo, podemos dizer, se as outras condições forem idênticas, as moléculas de um prédio possuem uma menor entropia em comparação com as moléculas do ar, que estão muito mais agitadas). De acordo com a segunda lei da termodinâmica, a entropia sempre está aumentando em qualquer local do universo (que tende então a desorganização). Vamos tomar o exemplo de um cubo de gelo: a princípio, o cubo de gelo é um aglomerado de moléculas extremamente juntas. Se deixarmos esse cubo fora do freezer, por exemplo, ele derreterá formando água e, se deixarmos tempo suficiente, se tornará vapor. É importante dizer que, no estado gasoso, a entropia (desorganização) das moléculas de água é muito maior em relação ao cubo (estado sólido). Portanto, nossa pequena experiência de descongelar gelo mostra que, assim como todas as coisas no universo, os sistemas tendem à ficar mais desorganizados. Para ser mais preciso, o conceito de entropia diz respeito ao número de estados (ou conformações) possíveis de um sistema. Voltando ao exemplo do gelo, é fácil imaginar que quando congelado, um cubo só pode assumir uma forma possível, mas se estiver em forma líquida,  a água pode assumir diversas formas possíveis, poderíamos até mesmo usá-la para fazer um gelo de outro formato, outra conformação. No entanto, considerar entropia como grau de desordem de um dado sistema é suficiente quando não temos a intenção de fazer cálculos ou modelos físico-químicos rebuscados.

Imagem extremamente simples sobre entropia: Repare que as moléculas do sólido estão muito mais organizadas em comparação com o gás | Autor desconhecido

Voltemos então para as nossas ideias de origem da vida então. Afinal, o que entropia tem a ver com bactérias ancestrais em uma sopa ou mesmo baleias nadando graciosamente por um vasto oceano? A princípio, a segunda lei da termodinâmica vai contra a ideia de como a vida funciona. Se as coisas estão constantemente entrando em desordem, como explicamos células organizadas e organismos complexos como o nosso? Durante muito tempo isso foi um argumento criacionista, dizendo que a vida não poderia surgir sem uma “ajuda divina”, pois a entropia acabaria rapidamente com qualquer tipo de organização que pudesse aparecer. É aí que trazemos novamente o nome de Jeremy England. A ideia do biofísico é que, a vida surgiu em consequência da segunda lei da termodinâmica. Seu pensamento principal diz que as leis físicas, em determinadas situações, tendem a criar estruturas organizadas, sejam estas vivas ou não, pois seriam melhores para dissipar energia. Nesta palestra Jeremy utiliza um exemplo totalmente inanimado para trazer essa ideia: partículas de prata, após serem submetidas por diferentes cores do espectro luminoso, tendem a se aglomerar de formas diferentes de acordo com a cor que recebiam (pois cada cor difere entre si quanto à energia emitida). Isso mostra que as partículas se juntam de determinada maneira para conseguir dissipar a energia absorvida de maneira mais eficiente. Partindo então deste exemplo “inanimado”, podemos usar essa ideia para os “animados”, como a vida. Não melhorou em nada essa explicação, certo? Vamos então um exemplo que conhecemos: imagine um lindo espécime de araucária, essa árvore, como todas as plantas do mundo, absorve energia luminosa do sol e a utiliza para produzir seu próprio alimento, liberando energia em forma de calor para o ambiente durante essa produção e durante seu crescimento (importante dizer que calor é uma forma de energia menos concentrada, portanto menos organizada, em relação à luz). Isso mostra que uma planta é a maquinaria perfeita para dissipação de energia! Ainda está um pouco confuso? Imagine então um urso. A maioria das espécies de urso, como por exemplo o urso-cinzento, se alimenta árduamente o verão inteiro para conseguir sobreviver os meses frios do congelante inverno ártico. Ao longo desta estação, o urso dorme e, a fim de manter a temperatura corporal, o organismo realiza diversas reações químicas em que, em todas elas, calor é dissipado para o ambiente e consequentemente para  o universo. O que fez o urso, afinal? Ele usou uma forma de matéria densamente organizada (como por exemplo a carne de um peixe) e a transformou parcialmente em em calor, em aumento de ENTROPIA! (Caso tenhas ficado realmente interessado com essas ideias, podes ler essa redação escrita pelo próprio Jeremy para complementar).

Bom, mas essas são formas de vida já um tanto complexas. Como explicar então os primeiros organismos vivos? Como explicar o LUCA? Talvez se pensarmos em como era o planeta Terra 4 bilhões de anos atrás fica até mais fácil de idealizarmos. Imagine por um momento sendo uma molécula presente na sopa primordial. Você está constantemente sendo bombardeado por raios, ventos solares, radiação e outras fontes de energia externa. Todas essas forças são extremamente energéticas, ou seja, ainda possuem muita energia a ser dissipada. Talvez uma forma que as leis da física adquiriam para aumentar o grau de entropia bem seria conceber, de maneira aleatória e probabilística, verdadeiras máquinas que pudessem fazer esse trabalho de uma forma mais eficiente. A natureza poderia “criar pequenas bolsas de matéria” que fossem capazes de gerar desordem de uma maneira mais competente em relação às formas físicas usuais de dissipação de energia (como por exemplo uma descarga elétrica). Dessa forma, a vida seria uma consequência direta das leis naturais físicas. Não seria necessário nenhum “empurrãozinho” divino ou extraterrestre.

É importante salientar que as ideias de Jeremy não são absolutas, mas probabilísticas. Você deve estar provavelmente pensando “Vish maria, o tema já é bem complicado mesmo sem trazer estatística no meio disso tudo. Agora ferrou de vez!”. Calma, não é bem assim. Através de uma série de explicações, Jeremy tenta mostrar que a matéria não é algo que está constantemente querendo dissipar energia, mas sim que quando submetida à uma energia externa (como por exemplo radiação solar), ela tende a criar uma forma que seja melhor para dissipar aquele determinado tipo de energia. Mas então onde a probabilidade entra nesse meio?

Bom, quando pensamos em entropia, pensamos no “princípio da irreversibilidade dos acontecimentos”. Por exemplo, se um copo cai no chão e se espatifa em milhões de subprodutos (ocorrendo assim aumento da entropia), é impossível ele se reconstituir e volte à ser exatamente o que era anteriormente. Se por um momento aceitarmos as ideias de Jeremy e, olhamos as probabilidades, podemos ver que é provável que estruturas mais organizadas e eficientes na dissipação de energia sejam formadas espontaneamente. Como esse tipo de mudança na estrutura é irreversível,  um organismo submetido a esse processo não poderiam retornar ao que era antes. Ou seja, é por isso que as árvores não param de crescer: pois a vida é uma cadeia de reações irreversíveis.

Claro que tudo isso que foi discutido ainda é extremamente teórico e especulativo. Jeremy e seu grupo de estudos continuam atuando nessa área, basta esperarmos novas publicações à respeito para conseguirmos debater suas ideias com maior afinco (aqui está o site em que Jeremy e seu grupo utilizam para disseminar suas ideias). Caso o interesse seja ainda maior, Jeremy publicará um livro em 20 de setembro denominado “Every Life is On Fire”, ou “Toda a Vida Está Pegando Fogo”, em português.

Algumas pessoas podem pensar que essas ideias são um pouco tristes e frias. Ao longo de toda a história humana, sempre achamos que éramos a forma de vida mais importante e que tudo girava em torno do nosso umbigo. Através dos séculos, inventamos Deuses e Deusas para confortar a nossa própria solidão. Mas aqui fica uma reflexão: será que isso é realmente a ideia mais interessante? Na minha opinião, é muito mais encantador ser parte de algo muito maior que nós mesmos, do que sermos o centro do universo. Me sinto bem por ser um produto extremamente complexo e intrigante das leis físicas e bilhões de anos de evolução, ao invés de ficar mal por não ser a obra principal de uma forma divina. Neil deGrasse Tyson consegue resumir isso em apenas uma frase em um dos seus livros: Não vivemos simplesmente no universo. O universo vive em nós.

Referências adicionais

ALBERTS, Bruce et al. Biologia molecular da célula. 6. ed. Porto Alegre: Artmed, 2017.

MADIGAN, Michael T. et al. Microbiologia de Brock. 14. ed. Porto Alegre: ArtMed, 2016.

GALANTE, Douglas et al (Org.). Astrobiologia: Uma Ciência Emergente. São Paulo: Tikinet, 2016.

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