O Cavalo de Troia das plantas

Antigas estratégias de batalha para a guerra genética dos organismos

Por: André Geremia Parise

O mítico Cavalo de Troia pelo pincel de Giovanni Domenico Tiepolo (1727-1804) | The National Gallery
Conta-nos Homero, nas suas obras épicas Ilíada e Odisseia, que os gregos sitiavam há nove anos a cidade de Troia, presumivelmente na Ásia Menor, hoje Turquia. O motivo: Páris, príncipe de Troia, fugiu com Helena, esposa do rei Menelau, de Esparta, para se casar com ela. Ultrajado, Menelau reuniu os gregos e cruzou o Mar Egeu para atacar Troia, recuperar sua esposa Helena e seu orgulho ferido.
O sítio durou quase uma década em uma sangrenta guerra, mas os gregos ainda estavam longe de conseguir alcançar o seu objetivo: as enormes muralhas da cidade eram intransponíveis e Troia continuava inexpugnável. Quando já estavam perdendo as esperanças de vencer a guerra, Odisseu, rei de Ítaca e membro do exército grego, teve uma ideia, inspirado pela deusa Atena.
Odisseu sugeriu aos gregos que construíssem um gigantesco cavalo de madeira e o deixassem em frente aos portões da cidade. Em seguida, recolheriam seus exércitos e fingiriam bater em retirada, derrotados. Os troianos, ao acordarem naquela manhã funesta, encontraram o cavalo e acharam que os gregos o haviam deixado como um presente em reconhecimento da sua derrota.
Felizes e vitoriosos, os troianos trouxeram o cavalo para dentro da cidade e celebraram ao redor dele durante o dia inteiro. O que não sabiam, contudo, é que no ventre da estátua de madeira se escondiam Odisseu e toda uma tropa de soldados gregos. E assim, à noite, enquanto a cidade de Troia dormia satisfeita com a sua vitória, Odisseu e seus homens saíram do cavalo e traiçoeiramente abriram os portões da cidade, permitindo a entrada do exército grego e do vingativo Menelau. A ruína de Troia foi completa.
Apesar do ardil grego parecer antigo e ultrapassado (Ilíada e Odisseia foram escritas há mais de 2700 anos), na verdade ele é muito mais antigo do que que se imagina e, surpreendentemente, ainda é usado hoje em dia. Isso porque as plantas e os fungos estão em uma guerra igualmente épica há milhões de anos, cada um lançando mão de diversas armas e estratégias para tentar derrotar o outro.
Dentre essas estratégias, uma delas foi identificada não faz muito tempo e ainda há muita coisa por se descobrir a respeito. Contudo, a ciência já tem um nome para ela: silenciamento gênico inter-reinos. Mas, vamos com calma, começando por explicar o que é silenciamento gênico.
Silenciamento gênico: quando os genes são calados
Silenciamento gênico é o nome que se dá em biologia molecular quando um gene é impedido de ser usado pela célula (ou seja, ser expresso), levando à anulação do seu efeito. Todos aprendem na escola que o DNA é uma molécula extremamente importante, pois nela está codificada a “receita” para as proteínas que vão formar o e atuar no organismo. Quando uma proteína precisa ser fabricada, a célula lê o DNA e transcreve essas instruções em uma molécula semelhante ao DNA, chamada de RNA mensageiro (mRNA). O mRNA será, então, carregado para fora do núcleo da célula e será lido novamente, mas desta vez para dar origem a uma proteína. A mensagem transcrita será traduzida em uma proteína.
Acontece que nem todo RNA é lido e traduzido. Alguns RNAs sofrem um processamento diferente: por meio de uma enzima chamada Dicer, eles são picotados em pedaços menores, que recebem o nome de siRNAs (sigla inglesa para pequenos RNAs de interferência) e esses pedaços serão juntados a um complexo de proteínas chamado RISC (sigla inglesa para Complexo de Silenciamento Induzido por RNA), no qual uma das proteínas componentes é chamada de enzima Argonauta. Esse complexo proteico + siRNA irá, então, navegar pela célula procurando um mRNA que seja complementar à “amostra” que o RISC carrega consigo. Se eles encontram um mRNA que se encaixa perfeitamente no siRNA, a enzima Argonauta irá cortar o mRNA, expondo suas extremidades às vorazes exonucleases, enzimas que ficam patrulhando o interior da célula à procura de RNAs desprotegidos para os destruírem.
Assim, apesar do gene estar sendo lido e transcrito, ele não está sendo traduzido em uma proteína, pois o processo é interrompido no caminho: os “documentos” contendo as instruções para a fabricação das proteínas são destruídos antes de chegarem ao seu destino. Pode-se dizer, então, que o gene foi silenciado.
Esquema demonstrando como funciona o silenciamento gênico: RNAs precursores com fita dupla ou dobrada (dsRNA ou hpRNA, representados pelas “escadinhas” no alto) são quebrados pela enzima Dicer em pedaços menores. Estes perdem uma das fitas (representados como apenas uma linha), tornando-se siRNAs, e são unidos ao complexo de silenciamento RISC, do qual a enzima Argonauta (Ago) faz parte. Quando o complexo encontra um mRNA que se encaixe no siRNA, a enzima Argonauta o corta e o mRNA é degradado. O complexo pode ser reutilizado na busca por mais mRNAs | Modificado de Majumdar et al., 2018
Como analogia, imagine que, em uma empresa, as instruções para cada atividade a ser realizada sejam despachadas como ofícios a partir de um escritório central (o núcleo da célula). Contudo, ao saírem desse escritório, alguém aborda o office-boy, rasga e joga fora os ofícios, de modo que as instruções nunca cheguem ao destino e a atividade não seja executada. Podemos dizer que as instruções foram silenciadas, pois a mensagem não foi entregue.
O silenciamento gênico tem importantes aplicações para a vida dos organismos. Por exemplo, durante o desenvolvimento embrionário, células que são inicialmente iguais acabam se desenvolvendo em células completamente diferentes. Neurônios, células musculares e células da pele têm todas o mesmo DNA e possuem a mesma origem, pois todas descendem de um único ovócito fecundado por um espermatozoide. Como é possível essa diferenciação?
Muitos processos estão envolvidos nesse interessantíssimo fenômeno e um deles é o silenciamento gênico. Apesar de todas as células terem o mesmo DNA, nem todos os genes são expressos, pois muitos são silenciados por siRNAs e seu complexo de proteínas RISC, formando, assim, células diferentes. Outra importante aplicação natural do silenciamento gênico por siRNAs é a defesa contra RNAs invasores, como os de vírus.
Silenciamento gênico inter-reinos: quando a guerra atravessa as fronteiras do organismo
Pois bem, o silenciamento gênico dentro de um único organismo foi bem aceito pela comunidade científica, mas não se imaginava que isso pudesse acontecer entre organismos diferentes. Contudo, em 1998, os pesquisadores Lisa Timmons e Andrew Fire descobriram que esse fenômeno poderia ocorrer entre organismos de espécies e até mesmo reinos diferentes.
Para isso, eles desenvolveram uma bactéria transgênica que produzia siRNAs capazes de silenciar genes específicos, dentre eles os que eram traduzidos em fibras musculares de um verme chamado Caenorhabditis elegans. Ao alimentarem os vermes com essas bactérias, depois de um tempo eles começaram a apresentar o comportamento espasmódico típico de quem não tinha aquelas fibras musculares.
Para verificar visualmente esse silenciamento, os pesquisadores utilizaram vermes C. elegans transgênicos que produziam uma proteína fluorescente, fazendo-os brilhar de verde. Após alimentarem os vermes com bactérias também transgênicas e produtoras de siRNAS, eles perceberam que os vermes literalmente apagavam, pois a proteína fluorescente não era mais produzida.
Experimento de Timmons e Fire mostrando os vermes Caenorhabditis elegans transgênicos fluorescentes antes (à esquerda) e depois (à direita) de serem alimentados com bactérias produtoras de siRNAs. Após a ingestão das bactérias, os vermes “apagam” | Modificado de Timmons & Fire, 1998
A partir daí muitas outras interações do gênero foram sendo descobertas, desta vez naturais, ou seja, não só entre animais transgênicos com bactérias transgênicas. Um importante caso de silenciamento gênico entre reinos se dá entre nós mesmos, os humanos, e os parasitas causadores de malária, que são do reino Protista.
Há muito tempo se sabe que pessoas portadoras de anemia falciforme são mais resistentes à malária. Não se sabe ainda exatamente o porquê disso e muitas hipóteses têm sido sugeridas e testadas. Por exemplo, acredita-se que o formato anormal que as hemácias assumem quando não estão carregando oxigênio faça com que haja um extravasamento de nutrientes, de modo que o parasita não consegue se alimentar adequadamente.
Porém, em 2012, Gregory LaMonte e colaboradores descobriram que as hemácias possuem uma grande quantidade de siRNAs que silenciam genes cruciais para a sobrevivência do parasita. Interessantemente, o parasita não tem a proteína Dicer e o complexo RISC, de modo que o mecanismo de funcionamento é outro ainda por ser elucidado.
Entre animais e animais o silenciamento gênico ocorre também. Já foi descoberto que o parasita Heligmosomoides polygyrus, um verme que vive no intestino de camundongos, secreta vesículas recheadas de siRNAs que irão silenciar os genes relacionados à imunidade dos camundongos, facilitando a infestação.
Porém, as relações de silenciamento gênico inter-reinos que são melhor estudadas até o momento são as que ocorrem entre plantas e fungos patogênicos. E é por isso que iremos nos concentrar nessa grande batalha genética.
A grande batalha: plantas vs. fungos
Plantas e fungos estão em uma guerra que já dura alguns milhões de anos, embora certos fungos e plantas tenham estabelecido uma profunda relação de amizade, tornando-se simbiontes e colaborando mutuamente, como é o caso das micorrizas. Esses fungos vivem nas raízes das plantas e as auxiliam a encontrar nutrientes no solo em troca dos açúcares que as plantas produzem. Fora isso, a batalha é homérica, apesar de microscópica.
Durante o processo de infecção, o fungo, para conseguir entrar na planta, necessita driblar o sistema imune da planta. Do outro lado, a planta precisa impedir o fungo de entrar nas suas células. Nos últimos anos tem descoberto que parte dessa batalha se dá no nível genético: as plantas usam como armas os siRNAs, que entregam aos fungos para tentar silenciar genes relacionados à virulência. Os fungos, por sua vez, lançam nas plantas siRNAs que tentarão silenciar genes relacionados à imunidade.
Inclusive, recentemente foi desenvolvida uma nova tecnologia chamada HIGS (Silenciamento Gênico Induzido por Hospedeiro, em inglês), em que pesquisadores criam plantas transgênicas capazes de produzir siRNAs para silenciar genes específicos de fungos, especialmente os danosos à agricultura. Já se obteve sucesso no bloqueio a infecções em plantas comuns como trigo, bananeira, cevada, fumo, milho e amendoim. Contudo, ainda se está estudando se há algum risco para a saúde humana ingerir essas plantas produzindo siRNAs transgênicos. Por enquanto, não há dados conclusivos.
No entanto, como é muito frequente na ciência, essa tecnologia já está sendo desenvolvida com vistas de aplicação sem que se saiba sequer como funciona o mecanismo de transferência de siRNAs entre as plantas e os fungos. Porque, veja bem, ao contrário do que acontece com os animais, todas as células das plantas possuem uma parede celular feita de carboidratos, como celulose e pectinas, além de outras substâncias, como lignina, que as protege e dá suporte. Os fungos também possuem uma parede celular, mas no caso ela é de quitina, o mesmo material do qual a carapaça dos insetos é feita. Como, então, os siRNAs saem de uma célula e chegam a outra? Porém, é claro que a necessidade de fazer dinheiro é muito maior do que a de compreender o mundo natural, então certas tecnologias são desenvolvidas sem que se sabia como funcionam, ou quais são os seus riscos para as pessoas e a natureza.
Fungo da podridão-cinzenta (Botrytis cinerea) atacando um morango. Por baixo de uma camadinha de mofo, uma verdadeira batalha imunológica | autoria desconhecida
Mas, voltando ao assunto, um pouco de luz foi lançada sobre esse instigante mecanismo ainda no ano passado, quando um time de pesquisadores, liderado por Hailing Jin, estudou a transferência de siRNAs entre uma planta parente da mostarda, a Arabidopsis thaliana, e o fungo da podridão-cinzenta, Botrytis cinerea.
Após uma série de estudos muito elegantes, eles descobriram que a transferência de siRNAs não é passiva, seguindo um gradiente de concentração, mas sim ativa, por meio de vesículas contendo os siRNAs que são entregues ao fungo. A planta produz siRNAs e os empacota em vesículas, as quais ela “presenteia” ao fungo. Este, tendo na superfície das suas células proteínas que reconhecem e atuam na absorção das vesículas, ao internalizá-las, tem a desagradável surpresa de descobrir que estavam recheadas de siRNAs que irão silenciar os seus genes. Um verdadeiro presente de grego!
Os pesquisadores perceberam que os genes fúngicos que os siRNAs das plantas silenciam são, justamente, genes relacionados à triagem e tráfego de vesículas na célula do fungo. Silenciando-os, a planta impede o fungo de criar e secretar vesículas ele também. Ou seja, a planta, malandramente, impede o fungo de utilizar as armas que ela mesma está usando contra o fungo.
Ao nos depararmos com um mecanismo desses, no qual durante uma guerra entre reinos adversários (o reino Plantae e o reino Fungi) um “presente” é utilizado para atravessar as muralhas de um dos combatentes (a parede celular do fungo) e entregar a devastação e a morte, não podemos deixar de lembrar da história épica do Cavalo de Troia que, repleto de inimigos, penetrou as muralhas da cidade para destruí-la e dar a vitória aos gregos.
Não à toa, num artigo escrito por Claudia Castillo-González e Xiuren Zhang, os autores bem-humoradamente fizeram essa analogia ao ilustrar essa interação, a qual eu compartilho aqui também. Contudo, veja como isso é fascinante: na árvore da vida, os ancestrais das plantas e dos fungos se separaram há cerca de um bilhão e setecentos milhões de anos. Apesar disso, os mecanismos básicos de silenciamento de genes ainda são essencialmente os mesmos, demonstrando como eles são bem conservados. Assim, é possível que plantas e fungos pelejem desde que ambos os grupos surgiram, há vários milhões de anos. Uma batalha que faz os dez anos que durou a Guerra de Troia parecerem briga de colégio!
Representação do mecanismo de ataque da planta: siRNAs são produzidos e carregados no “Cavalo de Troia” vegetal que irá ser entregue ao fungo com o auxílio das proteínas TET8 e TET9. Ao chegar na célula do fungo o cavalo libera os siRNAs que irão fazer o seu trabalho, silenciando genes fúngicos relacionados à infecção | Castillo-González & Zhang, 2018

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