Botânica Forense: quando as plantas entram na cena do crime

Plantas frequentemente estão na cena do crime e podem ajudar a solucioná-lo | autoria desconhecida
Na sarjeta de um condomínio residencial de Taipei, em Taiwan, o corpo de uma jovem foi inesperadamente encontrado em uma calçada. Não se sabe as circunstâncias da morte, mas existe a suspeita de que ela teria sido atropelada por um caminhão e seu corpo foi arrastado até ali para disfarçar o acidente. Ao ser levada para a autópsia no hospital, porém, um pequeno detalhe chama a atenção dos legistas: emaranhado aos cabelos negros da jovem estava um pequeno ramo com um frutinho. E aquele pequeno ramo seria uma das principais chaves para descobrir quem matou a pobre moça de Taipei…
A botânica, ciência que estuda as plantas, é um campo de pesquisa muito rico e com muitas subáreas. Pode-se estudar a origem e evolução das plantas, a sua fisiologia, a sua anatomia, sua composição química, dentre muitas outras coisas. E, como os seres humanos dependem totalmente das plantas para viverem, existem muitas aplicações da botânica em nossas vidas. Para citar alguns exemplos, pode se buscar o melhoramento de espécies e variedades de vegetais para o consumo humano, o desenvolvimento de novos medicamentos e produtos à base de plantas, o uso de plantas para descontaminação do solo e o próprio paisagismo e jardinagem, uma aplicação muito nobre da botânica, diga-se de passagem.
Contudo, uma área ainda bastante subutilizada e até desconhecida da botânica é, justamente, a botânica forense. Ou seja, o uso de plantas e algas para ajudar a solucionar crimes e outros assuntos legais (nem só de crimes vivem os legistas). Assim como a medicina, a química e a balística podem vir em auxílio da Justiça ao contribuir para a solução desses problemas legais, a biologia, nas suas múltiplas formas, também pode (há um capítulo somente sobre entomologia forense — o uso de insetos para solucionar crimes — no recém-lançado livro do Sporum. Link para download aqui) e a botânica não faz exceção.
As plantas, por geralmente não poderem se mover, têm a anatomia de seus corpos e mesmo a sua bioquímica estreitamente relacionada ao lugar onde vivem. Desse modo, muitas plantas vivem somente em locais específicos, pois dependem da qualidade do solo, da quantidade de luz que recebem, da umidade e assim por diante. Saber a maneira como as plantas vivem e compreender a sua anatomia e fisiologia pode ser muito útil quando uma planta aparece numa cena de crime. A taxonomia, a anatomia, a fisiologia vegetal e a ecologia são disciplinas que auxiliam na identificação da planta e de seu local de origem, e isso pode ter valor de prova em um julgamento, indicando, por exemplo, onde a vítima estava quando foi morta, ou se foi movida de um lugar a outro.
Outra área importante da botânica é a palinologia, ou seja, o estudo do pólen. Estes minúsculos grãos extremamente resistentes são produzidos em locais e estações do ano específicas e podem durar milhares de anos. Assim, são úteis em estudos paleontológicos e arqueológicos, como o estudo que reconstruiu a trajetória que Ötzi, a múmia de mais de 5000 anos encontrada nos Alpes italianos, percorreu nas últimas horas antes de sua morte por meio de pólen encontrado em seu trato digestivo.
A comparação de grãos de pólen encontrados no controverso Sudário de Turim com o pólen de plantas endêmicas da região de Israel levou pesquisadores a afirmarem que a origem do tecido é a Palestina e que o corpo que o sudário supostamente envolveu teria recebido um funeral hebraico. Contudo, devido à delicadeza do tema esses estudos são muito criticados e não há consenso ainda sobre a origem do tecido. Quanto ao pólen utilizado para resolver crimes, falarei de um caso ocorrido em Magdeburgo mais adiante.
Diatomáceas e suas belíssimas carapaças podem ser usadas para elucidar crimes | autoria desconhecida
O estudo das algas também pode contribuir para análises forenses. De especial valia são as diatomáceas, minúsculas algas unicelulares que possuem belíssimas carapaças de sílica. Como a sílica é um mineral, não se degrada tão facilmente, permanecendo no corpo de uma vítima por muitas horas depois de o crime ter ocorrido e, por isso, essas algas são muito úteis para a criminalística. Por exemplo, se a vítima foi afogada, ou se afogou, ela irá acabar inalando água. Com a água vêm milhares de diatomáceas que acabam indo para os pulmões e, a partir daí, para a corrente sanguínea através de minúsculos ferimentos nos alvéolos pulmonares. Por fim, vão parar em órgãos internos e na medula óssea. Assim, se forem identificadas diatomáceas na medula de uma vítima, isso indica que ela estava viva quando entrou na água e que sua causa mortis foi afogamento.
Agora, alguns casos que foram elucidados com o auxílio da botânica forense.
O primeiro caso de que se sabe ter usado plantas para resolver um crime foi o que ficou conhecido como caso Lindbergh. Em 1932, nos Estados Unidos, o bebê Charles Lindbergh Junior foi sequestrado e assassinado e o principal suspeito era Bruno Richard Hauptman. A principal evidência que ligou o sequestro do bebê a Hauptman foi uma escada de madeira utilizada para acessar o segundo andar da casa dos Lindbergh. Através de estudos da anatomia das madeiras da escada, Arthur Koehler, do Laboratório de Produtos Florestais do Serviço Florestal dos EUA, além de identificar quatro espécies de árvores que compunham a escada, demonstrou através das marcas de aplainamento que a madeira utilizada na sua fabricação provinha de um depósito de madeira próximo à casa de Hauptman mesmo antes de ele ser considerado suspeito. Em seguida, Koehler percebeu que a escada havia sido trabalhada com uma ferramenta cujas marcas eram compatíveis um uma plaina de mão encontrada na casa do suspeito. Por fim, o padrão do nó de um dos degraus da escada coincidia com uma madeira cortada encontrada no sótão de Hauptman. Essas três linhas de evidências serviram de provas para a sua prisão e condenação à morte.
Casa da família Lindbergh com a escada usada pelo sequestrador e foto do bebê raptado | New York Daily News
Em relação ao pólen, em 1994 foram encontrados em uma vala 32 ossadas de homens na cidade de Magdeburgo, na Alemanha. Após muito estudo chegou-se a duas hipóteses sobre a origem dos esqueletos: a primeira é a de que os homens teriam sido assassinados pela polícia secreta nazista na primavera de 1945. Na segunda hipótese, as vítimas teriam sido soldados soviéticos mortos pela polícia secreta da Alemanha Oriental no verão de 1953. Palinólogos foram acionados para tentar descobrir esse mistério e recolheram das cavidades nasais dos crânios pólen que teria sido respirado pouco antes dos homens morrerem. As suas análises demonstraram que se tratava de pólen produzido por plantas que florescem nos meses de verão, demonstrando que a hipótese dos soldados soviéticos era a correta.
Outro caso interessante aconteceu em Taipei também, onde um homem foi encontrado morto em uma valeta ao lado de uma estrada, com os joelhos machucados e pedaços de grama agarrada em suas mãos fechadas. Na autópsia, identificou-se um pedaço de folha de bambu em seu estômago. Porém, não havia bambu na valeta. Com mais informações concluiu-se que ele havia sido vítima de um acidente de carro e estava sendo levado a um hospital quando os culpados mudaram de ideia e o abandonaram num bosque de bambu ali perto. Ele ficou algum tempo lá até se arrastar até a vala (como demonstrado pelas contusões nos joelhos e a grama das mãos) e morreu ali.
No Brasil, o caso mais famoso de um crime solucionado com o auxílio da botânica foi o assassinato da advogada Mércia Nakashima, em Nazaré Paulista, SP, no ano de 2010. Após o seu desaparecimento o seu carro foi encontrado no fundo de uma represa por bombeiros e, na manhã seguinte, seu corpo foi localizado. Do alto de uma colina a cerca de cem metros do local do crime uma testemunha que se preparava para pescar naquela madrugada relatou ter visto o carro ser empurrado para dentro da represa, ter ouvido gritos de mulher e viu um homem alto que não conseguiu identificar.
Carro da advogada Mércia Nakashima sendo retirado da represa de Nazaré Paulista | Paulo Toledo Piza
Um suspeito do crime era Mizael Bispo de Souza, ex-namorado de Mércia. Em meio às investigações foi encontrado no lodo preso à sola dos sapatos de Mizael e no tapete de seu carro algas verdes. O biólogo e professor Dr. Carlos Eduardo de Mattos Bicudo, especialista em algas, foi convidado para identificá-las e, de acordo com ele, havia 90% de probabilidade de pertencerem ao gênero Stigeoclonium. Segundo o biólogo, essas algas crescem entre 20 e 50 cm de profundidade em lagos de água doce, necessariamente aderidas a algum substrato, como lodo ou pedras. Segundo ele, a única maneira de aquelas algas estarem no sapato de Mizael seria se ele tivesse entrado na água. Além disso, elas estavam nos sapatos e tapete por um tempo compatível com o dia do assassinato, pois as algas são delicadas e teriam se estragado completamente se tivesse passado mais de três semanas. Ainda, aquelas algas sabidamente cresciam ali, pois haviam sido coletadas anos antes naquela mesma represa pela equipe de Bicudo em um estudo financiado pela FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) para estudar as algas do Estado de São Paulo, demonstrando a importância da ciência básica. Quem poderia imaginar que um inventário de algas seria útil mais tarde para solucionar um crime de repercussão nacional?
Algas do gênero Stigeoclonium ajudaram a solucionar o caso Mércia Nakashima | Birger Skjelbred
O depoimento de Bicudo foi uma das principais provas que levaram à condenação de Mizael a 22 anos e oito meses de prisão por ter brutalmente assassinado Mércia e empurrado seu carro para dentro da represa de Nazaré Paulista.
E em relação ao caso da jovem de Taipei que abre este artigo, após encontrarem o ramo em seus cabelos, os pesquisadores identificaram ser de uma planta conhecida como erva-moura (Solanum nigrum), da família das solanáceas, a mesma do tomate e da berinjela. Os pesquisadores voltaram à calçada onde a jovem foi encontrada e acharam mais ramos partidos da mesma planta. Ao olharem para cima encontraram-na plantada em uma jardineira a 3,5 metros de altura. Seria muito improvável que alguém no nível do chão tivesse arrancado aquele ramo. Quando analisaram as plantas os pesquisadores viram que havia alguns caules partidos e isso levou-os a concluir que a jovem não havia sido atropelada e sim caído do alto do prédio. Durante a queda seus cabelos roçaram nas plantas e arrancaram os ramos. Dias depois, quando a família foi contactada, descobriu-se que ela sofria de depressão e já havia feito uma tentativa de suicídio anteriormente. A conclusão foi que ela se suicidou.
Observando esses casos percebe-se que o estudo de plantas e algas pode ser muito valioso para ajudar a solucionar crimes e outros casos forenses. No entanto, essa ferramenta ainda é pouco utilizada, talvez porque as pessoas sempre tendem a subestimar a importância das plantas para o seu cotidiano. Quando ocorrer um crime novamente espero que os legistas se lembrem de perguntar, também, às plantas sobre o que ocorreu. Por vezes elas têm respostas surpreendentes.
A) Rua de Taipei onde foi encontrado o corpo da jovem, B) ramo de erva-moura preso em seus cabelos que ajudou a identificar a causa mortis | adaptado de Coyle et al., 2005.
Este texto foi baseado principalmente no artigo de Coyle e colaboradores, publicado na revista Croatian Medical Journal (em inglês), no artigo de Damas e colaboradores publicado na Revista Brasileira de Criminalística (em português), e na palestra proferida pela professora Dra. Lezilda Carvalho Torgan (da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul) no VIII Seminário em Botânica da Universidade Federal do Paraná que aconteceu em outubro de 2017 e que aguçou minha curiosidade pelo tema, levando-me a escrever este artigo, pelo que rendo os meus agradecimentos.

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