Para ser cientista preciso estudar filosofia e história da ciência?

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Qual seria o interesse de um pesquisador em filosofia e história da ciência? Por que ele precisa estudar isso? Quais seriam os argumentos que corroboram a necessidade do estudo destas duas áreas do conhecimento? Acredito que essas sejam questões muito importantes para serem respondidas e que muitos acadêmicos e estudantes costumam respondê-la de maneira equivocada. Neste ensaio vamos buscar refletir sobre certas questões e tentar demonstrar como essas áreas são fundamentais para a formação tanto do biólogo como de outros profissionais.
Para começar essa abordagem sobre o tema, gostaria de lembrar de um dos grandes pensadores do século XVII: René Descartes. Filósofo, físico e matemático, foi importantíssimo no desenvolvimento do pensamento científico da época, tendo grande participação na chamada Revolução Científica,  assim como outros grandes representantes, Newton e Galileu, por exemplo. René comparava toda a filosofia com uma árvore, onde suas raízes seriam a metafísica, o tronco a física e os ramos todas as demais ciências¹. Acredito que ele esteja utilizando a palavra filosofia em um sentido mais amplo, mas se pensarmos nela como sendo todo o conhecimento, ainda podemos entender o valor que Descartes coloca dentro da filosofia. Todos os campos científicos partiriam dela.
Sendo assim, pelo menos desde o século XVII até a era contemporânea, muitos autores já se questionaram sobre a filosofia e sua relevância, principalmente dentro do pensamento científico. Atualmente, a filosofia e história da ciência são essenciais para qualquer indivíduo que almeja ser um cientista e queira produzir conhecimento científico de qualidade. Penso nesse sentido pelos seguintes motivos. Primeiramente você precisa entender o que faz e porque faz aquilo que faz. Ou seja, sua necessidade é compreender de maneira ampla seu campo científico e as perguntas que deseja responder. Como diria Thomas Kuhn, existe um conjunto de concepções, valores e técnicas compartilhados por uma comunidade científica que delimitam seu campo de conhecimento e norteiam as perguntas a serem respondidas, o chamado paradigma². Portanto, você precisa entender o paradigma no qual está inserido.
Outro motivo, pelo qual a história da ciência é essencial para a formação de um cientista, é o fato de que para termos um entendimento realmente sistêmico e abrangente sobre determinado campo científico, é importante, além de tudo, saber sobre sua história. Saber como este paradigma chegou ao seu estado atual. Quais foram as grandes revoluções científicas desta área? Como os métodos e teorias foram sendo modificados ao longo do tempo? Esse tipo de saber nos leva a criar diversas conexões que nos permitem falar com muito mais propriedade sobre determinado assunto.
A epistemologia, uma das grandes áreas da filosofia, é outro dos motivos pelo qual precisamos compreender o assunto. A epistemologia é o ramo da filosofia que trata da natureza, etapas e limites do saber humano. Ou seja, como muitos dizem, ela é realmente a teoria do conhecimento. Segundo Gustavo Caponi³, o progresso científico nem sempre se limita ao simples acúmulo de dados, em certas ocasiões esse progresso necessita  de profundos questionamentos teóricos, chamados questionamentos epistemológicos. É interessante ressaltar que esses questionamentos não dizem a respeito dos fenômenos do mundo, mas sim sobre como deve-se dizer sobre os fenômenos, as regras acerca disso. 
A tarefa da epistemologia consiste na reconstrução racional do conhecimento científico, conhecer, analisar todo o processo construtivo da ciência do ponto de vista lógico, linguístico, sociológico, interdisciplinar, político, filosófico e histórico⁴.  Portanto, é de alta relevância compreender que as reflexões epistemológicas são um dos ingredientes necessários para o progresso científico. Autores como Foucault, Piaget, Popper, Maturana e tantos outros foram chaves abrindo portas de inúmeros saberes.
Outro argumento que pode ser utilizado para corroborar a hipótese da alta importância da filosofia e história da ciência é que os conhecimentos oriundos delas são considerados suportes fundamentais para didática científica³. Em outras palavras,  se nosso objetivo é ter um sistema de educação científica, precisamos de professores qualificados para transportar os novos saberes da academia para a sala de aula e, para isso, conhecimentos de filosofia e história da ciência se fazem indispensáveis.
Acredito que até aqui, com os diversos argumentos mencionados, minha hipótese da importância dessas duas áreas se mostra muito bem corroborada. Porém, antes de finalizarmos o texto, gostaria de falar um pouco sobre outro autor chave dentro das reflexões epistemológicas e da biologia atual. Humberto Maturana é seu nome, nascido em 1928, é um biólogo chileno que junto com Francisco Varela (1946-2001), biólogo de mesma formação, produziram teorias como a Autopoiese e outros aspectos relacionados à cognição que os colocaram dentro dos principais questionamentos científicos da época⁵. 
Gostaria de me ater aqui a apenas uma parte específica dos textos de Maturana. Acredito que seja um questionamento muito interessante e serve de exemplo para demonstrar como a filosofia pode transformar nossa visão de mundo radicalmente. Sendo assim, irei falar sobre a percepção. Maturana chama atenção para o fato de que, na experiência, a ilusão é indistinguível da percepção. Por exemplo, quando “sentimos” que nosso ônibus está partindo, mas na verdade estamos parados e o ônibus ao lado é que está em movimento⁵.
Logo, segundo Maturana, não podemos distinguir, na experiência, entre verdade e erro. 
Mas e quando estamos tentando explicar um fenômeno?
Maturana chama atenção que o explicar é uma operação distinta da experiência que se quer explicar. Ou seja, a experiência é uma coisa e a explicação da experiência é outra. Maturana dá o seguinte exemplo: você está dirigindo e, de repente, um carro que parece ter surgido do nada lhe ultrapassa; seu acompanhante se surpreende e você procura justificar um pouco a surpresa dizendo “certamente ele vinha muito rápido, ou estava no ponto cego do retrovisor”. Mas suas palavras são uma explicação da experiência. O fato é que, na experiência, o automóvel surgiu do nada. Dizer que estava no ponto cego ou que vinha muito rápido é uma explicação da experiência⁵. Assim, é o que o observador tem como experiência que constitui o que se quer explicar, não o fenômeno em si. 

Portanto, se aplicarmos esse raciocínio de Maturana na ciência podemos ter a seguinte reflexão: será mesmo que os cientistas alcançam a verdade?  O que é a verdade? Nossos processos cognitivos percebem todos os fenômenos possíveis do mundo? Será que o que estamos escrevendo nos artigos científicos é a realidade sobre o mundo ou é apenas nossa experiência? Essa epistemologia de Maturana, se fosse adotada por toda comunidade científica, transformaria o modo de fazer ciência atual, retirando o cientista de sua bolha fora da realidade e colocando-o na realidade de todas as demais pessoas, participando, assim, dos fenômenos que se quer explicar. Isso, por si só, já é capaz de nos mostrar a importância da filosofia e história da ciência para todas as pessoas.
Bibliografia


¹ Capra, Fritjof, and Newton Roberval. Eichemberg. A Teia Da Vida: Uma Nova Compreensão Científica Dos Sistemas Vivos. São Paulo: Editora Cultrix, 1996. Print.

² Kuhn, Thomas S. A Estrutura Das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva, 2007. Print.

³ Caponi, Gustavo. La función de los estudios epistemológicos en un sistema de ciencia y  tecnología. Ludus Vitalis 21.39 (2016): 257-261.

⁴ Tesser, Gelson João. Principais linhas epistemológicas contemporâneas. Educar em Revista 10 (1994): 91-98.

⁵ Moreira, Marco Antonio. A Epistemologia De Maturana. Ciência & Educação (Bauru) 10.3 (2004): 597-606. Print.

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